TST - INFORMATIVOS 2023 267 - de 01 a 17 de fevereiro

Data da publicação:

Acordão - TST

Alexandre de Souza Agra Belmonte - TST



MOTORISTA. VÍNCULO DE EMPREGO. SUBORDINAÇÃO ALGORÍTMICA. TRANSCENDÊNCIA SOCIAL E JURÍDICA RECONHECIDA.



MOTORISTA. VÍNCULO DE EMPREGO. SUBORDINAÇÃO ALGORÍTMICA. TRANSCENDÊNCIA SOCIAL E JURÍDICA RECONHECIDA.

1. Cinge-se a controvérsia em se determinar a existência, ou não, de vínculo de emprego entre motorista que utiliza plataforma digital de transporte de pessoas e a empresa criadora e administradora do aplicativo (UBER).

2. A causa oferece transcendência com relação aos reflexos gerais de natureza social e jurídica, na forma do art. 896-A, §1º, III e IV, da CLT. É questão nova e socialmente relevante, decorrente da utilização das tecnologias contemporâneas.

3. O atual ambiente de trabalho difere bastante daquele que propiciou o surgimento das normas trabalhistas, idealizadas para pacificar as questões jurídicas decorrentes de sociedades agrária e fabril por meio de contratos por tempo indeterminado, com prestação presencial e processo produtivo centralizado numa só empresa organizadora da atividade e controladora da mão de obra. Naquele tempo, a proteção à dependência do trabalhador em relação ao organizador da atividade empresarial decorria do fato de não possuir acesso, ingerência ou controle dos meios produtivos, daí resultando a sua fragilidade na relação jurídica e a necessidade de proteção compensatória por meio de direitos mínimos e instrumentos garantidores de reivindicação coletiva. O emprego da palavra "dependência" no artigo 3º da CLT, de 1943, é claro nesse sentido. A essa dependência econômica, resultante da impossibilidade de controle obreiro da produção, adere complementarmente a subordinação jurídica ao poder de direção revelado no art. 2º, da qual resulta a aderência contratual do empregado às condições de trabalho às quais se submete. Assim, a subordinação clássica, histórica ou administrativa a que se refere a CLT no art. 3º é a dependência econômica derivada da impossibilidade obreira de controle dos meios produtivos. A subordinação a que alude o art. 2º é a subordinação executiva, que confere maior ou menor autonomia ao trabalhador conforme a atividade desenvolvida ou as características da prestação de serviços.

4. Com o passar do tempo, os estudos abandonaram a ideia da fragilidade fundada na dependência econômica pela impossibilidade de controle da produção, para centrar a proteção trabalhista unicamente na subordinação, que de subjetiva a centrada na pessoa do trabalhador, adquiriu caráter objetivo voltado à prestação de serviços. Uma vertente dessa teoria desenvolveu a ideia da proteção fundada na dinâmica do processo produtivo (subordinação estrutural), cuja característica mais visível é presumir a existência da relação de emprego.

5. Vieram a Terceira e Quarta Revoluções Industriais ou Tecnológicas, alterando gradativamente o processo produtivo. Hoje, o trabalho é comumente realizado num ambiente descentralizado, automatizado, informatizado, globalizado e cada vez mais flexível, trazendo para o ambiente empresarial novos modelos de negócios e, consequentemente, novas formas e modos de prestação de serviços e de relacionamento. Em tal contexto, conceitos que balizam a relação de emprego demandam uma necessária releitura, à luz das novas perspectivas de direção laboral, controle da atividade econômica ou meios produtivos e caracterização do tipo de vínculo de trabalho.

6. Com os avanços tecnológicos, nasce na década de 90, já na era do conhecimento e do pleno domínio da informática, da rede e dos aplicativos móveis, a "economia compartilhada", compreendida como um novo modelo econômico organizado, baseado no consumo colaborativo e em atividades que permitem que bens e serviços sejam compartilhados mediante troca de dados pela rede, principalmente on line, em tempo real. A criação de Smartphones, a disponibilização de redes móveis de internet, wi-fi público em diversos locais e pacotes de dados acessíveis são aliados na expansão dessa nova tendência que vem reorganizando o mercado. Nesse cenário, surgem as plataformas digitais, que revelam uma nova forma de prestação de serviços, organizada por meio de aplicativos que conectam o usuário à empresa prestadora, que pode, à distância e de forma automática, prestar o serviço ou se servir de um intermediário para, na ponta, fisicamente executar o trabalho que constitui o objeto da atividade proposta pela empresa de aplicativo. A título meramente exemplificativo são empresas como Netlix, Rappi, Loggi, Enjoei, OLX, Peguei Bode, Desapego, Mercado Livre, Breshop, Uber Eats, IFOOD, Exponenciais, Google Maps e Wase, Airbn, Pethub, Um 99, Buser, GetNinjas, Wikipédia, Amazon Mechanical Turk (MTurk) e Blablacar, expoentes a partir desse perfil de mercado.

7. Nos deparamos então com um fenômeno mundial, que faz parte de novo modelo de negócios, do qual resulta uma nova organização do trabalho decorrente de inovações tecnológicas ainda não abarcada por muitas legislações, inclusive a nossa, que provoca uma ruptura nos padrões até então estabelecidos no mercado. São as denominadas "tecnologias disruptivas" ou "inovações disruptivas", próprias de revoluções industriais, no caso, a quarta. A disrupção do mercado em si, do inglês "disrupt" (interromper, desmoronar ou interrupção do curso normal de um processo), não necessariamente é causada pela nova tecnologia, mas sim pelo modo como ela é aplicada. É nesse cenário que nasce a empresa ora recorrente (UBER), com sede nos EUA e braços espalhados pelo mundo, que fornece, mediante um aplicativo para smartphones, a contratação de serviço de motorista. Trata-se, na verdade, de uma TNC (Transportation Network Company), ou seja, uma companhia que, por meio de uma plataforma digital on line, conecta passageiros a motoristas ditos "parceiros", que utilizam seus automóveis particulares para o transporte contratado. Por meio do aplicativo da UBER, essa conexão "passageiro-motorista" ocorre de forma rápida e segura, quer quanto ao valor do pagamento da corrida, quer no tocante à qualidade e à confiabilidade da viagem. No entanto, como já referido, essa inovação disruptiva afeta as estruturas sociais e econômicas existentes. Ao difundir o seu modelo de negócios no Brasil, a UBER, inevitavelmente, alterou o status quo do mercado de transporte privado individual urbano, acarretando consequências à modalidade pública do transporte de passageiros. Estamos falando dos táxis espalhados pelo País, com os quais diretamente concorre. Só que em vez do taxista procurar o cliente, o cliente procura pelo aplicativo da UBER um motorista. Essa nova modalidade de prestação de serviços de transporte privado individual urbano introduzido pela UBER no Brasil, mediante uma "economia compartilhada" (shared economy), resultou no alavancamento de uma massa considerável de trabalhadores até então parcial ou totalmente ociosos. Em consequência (aí o que nos interessa), a UBER fez surgir um acalorado debate no meio jurídico sobre questões como:

a) A UBER é uma empresa de tecnologia ou de transporte?

b) os motoristas da UBER necessitam de proteção jurídica diferenciada?

c) A relação da UBER com seus empreendedores individuais denominados de "parceiros" caracteriza subordinação clássica? e

d) como os automóveis utilizados no transporte são dos próprios motoristas "parceiros", que podem estar logados ou não ao sistema da UBER conforme a sua conveniência, eles são empregados ou autônomos?

8. Nos autos do processo TST-RRAg-849-82.2019.5.07.0002, oriundo da eg. Terceira Turma, da qual sou egresso, manifestei naquela oportunidade o entendimento (cf. publicação no DEJT em 17/11/21) de que a Uber efetivamente organiza atividade de transporte por meio de plataforma digital e oferece o serviço público de transporte por meio de motoristas cadastrados em seu aplicativo. A Uber não fabrica tecnologia e aplicativo não é atividade. A atividade dessa empresa é, exclusivamente, propiciar o transporte, cujo aplicativo tecnológico de que se serve é o meio de conexão entre ela, o motorista "parceiro" e o usuário para efetivá-lo. É, enfim, uma transportadora que utiliza veículos de motoristas contratados para realizar o transporte de passageiros. Considerar a UBER (que no país de onde se origina é classificada como empresa de transporte por aplicativo e que inicialmente se autodenominava UBERTAXI) como empresa de tecnologia ou de aplicativo, uma vez que não produz nenhum dos dois, corresponderia a fazer do quadrado redondo e isentá-la de qualquer responsabilidade no trânsito quanto à sua efetiva atividade, o transporte que organiza e oferece, e para o qual o motorista é apenas o longa manus ou prestador contratado. Se fosse apenas uma plataforma digital não estipularia preço de corridas; não receberia valores e os repassaria aos motoristas; não classificaria o tipo de transporte fornecido e o preço correspondente; não estabeleceria padrões; não receberia reclamações sobre os motoristas e não os pontuaria. Enfim, como empresa de aplicativo e não como empresa de transporte que é, estaria atuando no mercado em desvio de finalidade.

9. Não se olvida que o fenômeno "Uberização" compreende novo modelo de inserção no mercado de trabalho e que deve ser incentivado não apenas porque é inovador, mas também porque permite concorrer com outros modelos de prestação de serviço de transporte para a mesma finalidade. No Brasil, quiçá mundialmente, o cenário de alto e crescente índice de desemprego e exclusão em decorrência do avanço da tecnologia, da automação e da incapacidade de geração de novas oportunidades no mesmo ritmo, atinge todos os níveis de instrução da força de trabalho e, portanto, de privação e precariedade econômica. Tal se potencializou com a recente pandemia do COVID 19, pelo que, além de outros fatores como alternativa flexível para gerar renda extra; necessidade de renda para ajudar na sobrevivência ou custear os estudos; espera pela realocação no mercado em emprego formal; não exigência de qualificação técnica ou formação acadêmica mínima, a migração de uma considerável camada da sociedade para essa nova modalidade de trabalho tornou-se uma realidade. Contudo, não passa despercebido que essa nova forma de prestação de serviços é caracterizada pela precariedade de condições de trabalho dos motoristas cadastrados. Entre outras intempéries, marcadas por jornadas extenuantes, remuneração incerta, submissão direta do próprio prestador aos riscos do trânsito. Doenças e acidentes do trabalho são capazes de eliminar toda a pontuação obtida na classificação do motorista perante o usuário e perante a distribuição do serviço feita automaticamente pelo algorítmo. A falta de regulamentação específica para o setor e, portanto, a inércia do Poder Público, se por um lado propicia aos motoristas que sequer precisam conhecer os trajetos, porque guiados pelo Waze, maior possibilidade de inclusão sem os custos e as limitações numéricas das autonomias municipais dos taxis, por outro propicia às empresas do ramo estratosféricos ganhos pelo retorno lucrativo com mínimo de investimento e o vilipêndio de direitos básicos oriundos da exploração do trabalho. Dois polos da relação jurídica, em balanças desiguais. Isso porque a baixa remuneração impõe aos motoristas parceiros, sem alternativa, diante do contexto já retratado, o cumprimento de jornadas excessivas de trabalho, a fim de assegurar-lhes ao menos ganhos mínimos para garantir a própria subsistência e/ou de sua família, aniquilando assim o lazer e a convivência social e familiar, em menoscabo inclusive às normas de saúde e segurança do trabalho, além da cobrança ostensiva por produtividade e cumprimento de tarefas no menor tempo possível, que de modo insofismável lhes gera danos físicos e psicológicos.

10. Impende salientar que recentemente foi editada a Lei 14.297/22, publicada em 6/1/22, cuja mens legislatoris não foi colocar pá de cal na cizânia acerca do vínculo empregatício entre as plataformas digitais e seus prestadores de serviço, mas tão somente assegurar medidas de proteção especificamente ao trabalhador (entregador) que presta serviço de retirada e entrega de produtos e serviços contratados por meio da plataforma eletrônica de aplicativo de entrega, durante a vigência, no território nacional, da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus responsável pela covid-19, donde se destaca o art. 10 da referida lei, in verbis: "Art. 10. Os benefícios e as conceituações previstos nesta Lei não servirão de base para caracterização da natureza jurídica da relação entre os entregadores e as empresas de aplicativo de entrega." Da análise da lei fica clara a fragilidade dos entregadores por afastamento do trabalho por doenças, o risco de acidentes no trânsito, a dependência do trabalhador à inserção e à manutenção no aplicativo e a necessidade de proteção para além do coronavírus. Comparativamente, os motoristas de plataformas digitais, ao menos em relação a esses itens, necessitariam, por aplicação analógica, de igual proteção.

11. Tem-se por outro lado que o conceito de subordinação é novamente colocado em confronto com a atual realidade das relações de trabalho, assim como ocorreu no desenvolvimento das teorias subjetiva, objetiva e estrutural. Surge assim a chamada "subordinação jurídica algorítmica", que, conforme a compreensão da Corte Regional, que aqui se reproduz, dá-se pela codificação do "comportamento dos motoristas, por meio da programação do seu algoritmo, no qual insere suas estratégias de gestão, sendo que referida programação fica armazenada em seu código-fonte. Em outros termos, realiza, portanto, controle, fiscalização e comando por programação neo-fordista". (pág. 628). Nessa toada, os algoritmos atuariam como verdadeiros "supervisores", de forma que os requisitos que caracterizam o vínculo empregatício não mais comportariam a análise da forma tradicional. Mas é lógico que subordinação algorítmica é licença poética. O trabalhador não estabelece relações de trabalho com fórmulas matemáticas ou mecanismos empresariais utilizados na prestação do trabalho e sim com pessoas físicas ou jurídicas detentoras dos meios produtivos e que podem ou não se servir de algoritmos no controle da prestação de serviços. Atenta a esse aspecto, em adequação às novas conformações do mercado, há mais de 10 (dez) anos a CLT estabelece, no parágrafo único do art. 6º, com redação dada pela Lei 12.551/11, que os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio. Assim, o fato do trabalhador não ter horário de trabalho consta da CLT em relação ao teletrabalhador empregado, exatamente quando remunerado por produção.

12. Feitas essas considerações, da análise detida do v. acórdão recorrido é possível concluir, para o exame dessa terceira indagação, que:

1) quem organiza a atividade e controla o meio produtivo de sua realização com regras, diretrizes e dinâmica próprias é a UBER;

2) Quem fixa o preço da corrida, cadastra e fideliza o cliente é a UBER, sem nenhuma ingerência do motorista prestador;

3) Quem aceita/defere o cadastramento e o descredenciamento do motorista é a UBER, após uma análise dos dados e documentos enviados, sendo que há exigência de carteira de motorista profissional, e veículos a partir de determinado ano de fabricação;

4) O motorista não tem nenhum controle sobre o preço da corrida, não podendo fixar outro. Quem estabelece o valor de cada corrida, a porcentagem devida, a concessão de descontos aos clientes é a UBER, tudo sem a interferência do motorista dito parceiro, ou seja, de forma unilateral, por meio da plataforma digital;

5) A autonomia do motorista restringe-se a definir seus horários e se aceita ou não a corrida;

6) A UBER opera unilateralmente o desligamento de motoristas quando descumprem alguma norma interna ou reiteradamente cancelam corridas;

7) O credenciamento do motorista é feito on line (site ou aplicativo) ou presencialmente em agências / lojas da UBER;

8) a classificação do veículo utilizado e o preço cobrado conforme essa classificação é definida pela empresa;

9) O motorista não escolhe o cliente e sim as corridas.

13. O mundo dá voltas e a história termina se repetindo, com outros contornos. E nessa repetição verifica-se que estamos diante de situação que nos traz de volta ao nascedouro do Direito do Trabalho, ou seja, da razão de ser da proteção trabalhista: a impossibilidade do trabalhador ter acesso ou controle dos meios produtivos. Em outras palavras, frente à UBER, estamos diante da dependência econômica clássica que remete aos primórdios do Direito do Trabalho e que propiciou o seu nascedouro. O trabalhador da UBER não controla os meios de produção porque não tem nenhuma ingerência sobre a dinâmica da atividade, a formação própria de clientela, o preço da corrida, a forma de prestação do trabalho, o percentual do repasse, a classificação do seu automóvel em relação ao preço a ser cobrado, o próprio credenciamento ou descredenciamento na plataforma digital. Diferentemente dos taxis, em que o vínculo é estabelecido com os passageiros, o vínculo tanto dos passageiros, como dos motoristas credenciados, é com a UBER. Os motoristas "logados" atendem aos chamados endereçados pelos passageiros à UBER. E diferentemente das cooperativas dos antigos táxis especiais, os preços das corridas eram previamente acertados em assembleia dos associados e as cooperativas não controlavam os trajetos e nem recebiam parte do lucro e sim contribuição fixa. Nessa toada, o argumento empresarial contestatório é desimportante, porque para a UBER pouco importa que o motorista tenha "autonomia" para estar logado e deslogado, ou recusar corridas. As corridas recusadas são de interesse da própria UBER, delas economicamente participantes por dizerem respeito, evidentemente, a trajetos não compensatórios em horários de muita demanda. E quanto ao fato de ter autonomia para se logar ou deslogar do sistema, isso não traz para a UBER qualquer impacto (e por isso não é procedimento vedado) diante do número de motoristas na praça e do fato de que o próprio motorista sofre do próprio remédio, a partir do momento em que fora do sistema não pontua.

14. Sobreleva notar, ademais, que, de acordo com os arts. 818, I e II, da CLT e 373, I e II, do CPC, incumbe ao autor o ônus da prova quanto a fato constitutivo de seu direito e ao réu quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Para a hipótese de prova dividida, o Juízo não decide sob o enfoque de melhor prova, uma vez que ambas se equivalem, impondo-lhe julgar contra aquela parte a quem a lei atribui o encargo probatório.

15. Soma-se a isso o fato de que jurisprudência e doutrina modernas se alinham no sentido de que a mera prestação de serviços gera presunção relativa de vínculo empregatício. Desse modo, quando o empregador admite a prestação de serviços, negando, contudo, o vínculo empregatício, atrai para si o ônus da prova de que aquela ostenta natureza jurídica diversa da trabalhista, fato impeditivo do direito vindicado. Precedentes.

16. Cabe também citar outros países como Inglaterra (case n. 2202550/2015), Suíça, França, dentre outros, e cidades como Nova York e Seatle, que também vêm reconhecendo vínculo empregatício entre os motoristas ditos parceiros da Uber enquadrando-os como empregados. A regência trabalhista das plataformas digitais já deveria ter sido objeto de apreciação pelo Parlamento. A ele cabe decidir, auscultando a sociedade como um todo, pela melhor opção para a regulação dos motoristas de aplicativos, ou seja, decretando o vínculo total de emprego; ou a concessão apenas parcial de direitos, na condição de trabalhadores economicamente dependentes, mas semiautônomos. Na falta de regulação pelo Congresso, cabe ao Poder Judiciário decidir a questão de fato, de acordo com a situação jurídica apresentada e ela, como apresentada, remete, nos termos dos artigos 2º e 3º da CLT, ao reconhecimento do vínculo empregatício, tal como vem sendo decidido no direito comparado.

17. In casu, a controvérsia foi dirimida com lastro no robusto acervo probatório dos autos, em que a Corte Regional, traçando um paralelo com o conceito de "fordismo" e apresentando ainda a subordinação em suas várias dimensões, foi enfática em asseverar que identificou na relação jurídica mantida entre a autora e a ré a presença dos elementos que caracterizam o vínculo empregatício, na forma dos arts. 2º e 3º da CLT.

a) No tocante à pessoalidade, ficou evidenciado o caráter "intuitu personae" da relação jurídica entre as litigantes.

b) Na esteira do princípio da primazia da realidade, concluiu-se pela onerosidade, sob a dimensão objetiva. Diante da conclusão de evidência de que a Uber é que estabelece o valor das corridas, bem como a porcentagem devida, de acordo com o trajeto percorrido e da maneira que lhe convier, e concede descontos aos clientes, tudo sem a interferência do motorista parceiro, ou seja, de forma unilateral, por meio da plataforma digital, intermediando o processo, uma vez que recebe do cliente final em seu nome, retira sua comissão em percentual predefinido e repassa a ele (motorista parceiro) o que sobra, decidiu-se que, da forma como procede, efetivamente remunera seus ditos motoristas parceiros e, portanto, a autora pelos serviços prestados, pelo que manifesta a onerosidade.

c) Quanto à não eventualidade, em resposta à argumentação da Uber de que não havia habitualidade na prestação de serviços, a Corte Regional declarou que "não existem dias e horários obrigatórios para a realização das atividades do Motorista Parceiro" e que "a flexibilidade de horários não é elemento, em si, descaracterizador da "não eventualidade" e tampouco incompatível com a regulação da atividade pelo Direito do Trabalho", além de registrar o labor semanal pela autora, conforme se extrai do seguinte excerto: "O número de horas trabalhadas pela autora semanalmente era acompanhado pela ré, vez que todos os dados ficam armazenados no aplicativo, assim como o número de viagens concluídas, a taxa de aceitação e de cancelamento". Assim, reconheceu-se o caráter habitual da prestação de serviços.

d) Verificou-se, finalmente, a subordinação. A Corte Regional consignou que a Uber exerce controle, por meio de programação neo-fordista e, portanto, pela presença da subordinação jurídica algorítmica. Para tanto, adotou o conceito de "subordinação jurídica disruptiva", desenvolvido pelo Exmo. Sr. Desembargador do TRT/17ª Região, Fausto Siqueira Gaia, em sua tese de doutorado. Como dito antes, subordinação algorítmica é, ao nosso ver, licença poética. Trabalhador, quando subordinado, é a pessoa física ou jurídica, ainda que ela se sirva do controle por meio do algoritmo, do GPS e de outros meios tecnológicos, como a internet e o smartphone. Como o mundo dá voltas e a história se repete com outros contornos, verifica-se que estamos aqui diante de situação que remete ao nascedouro do Direito do Trabalho, ou seja, da razão de ser da proteção trabalhista: a impossibilidade do trabalhador de acesso ou controle por meios produtivos. Em outras palavras, frente à UBER, estamos diante da subordinação clássica ou subjetiva, também chamada de dependência. O trabalhador é empregado porque não tem nenhum controle sobre o preço da corrida, o percentual do repasse, a apresentação e a forma da prestação do trabalho. Até a classificação do veículo utilizado é definida pela empresa, que pode, a seu exclusivo talante, baixar, remunerar, aumentar, parcelar ou não repassar o valor destinado ao motorista pela corrida. Numa situação como essa, pouco importa se o trabalhador pode recusar corrida ou se deslogar. A recusa ou o deslogamento se refletem na pontuação e na preferência, pelo que penalizam o motorista. Diante do denso quadro fático apresentado pela Corte Regional e, considerando-se, portanto, que a ré admitiu a prestação de serviços, mas não logrou, contudo, desvencilhar-se do ônus da prova quanto à inexistência de vínculo empregatício com a autora, bem como presentes todos os requisitos do vínculo de emprego, tal como fartamente demonstrado acima, a conclusão da existência do vínculo entre a autora e a Uber não afronta os arts. 2º e 3º da CLT. Ileso ainda o art. 170, "caput" e IV, da Constituição Federal, na medida em que os princípios da livre iniciativa e da ampla concorrência não podem se traduzir em salvo-conduto nem tampouco em autorização para a sonegação deliberada de direitos trabalhistas.

Recurso de revista não conhecido. (TST-RRAg-100853-94.2019.5.01.0067, 8ª Turma, rel. Min. Alexandre de Souza Agra Belmonte, julgado em 19/12/2022)

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