TRT 02/SP - INFORMATIVOS NOTÍCIAS e JURISPRUDÊNCIA 2022 - 04

Data da publicação:

Acordão - TRT

Jorge Eduardo Assad - TRT/SP



Negado o recurso de família que mantinha trabalhadora doméstica em condições análogas à de escrava.



PROCESSO TRT/SP N.º 1000612-76.2020.5.02.0053

RECURSO ORDINÁRIO DA 53a VT DE SÃO PAULO

RECORRENTE: MARIAH CORAZZA BARRETO USTUNDAG, DORA USTUNDAG E SONIA REGINA CORAZZA

RECORRENTE: DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO (REPRESENTANDO NEIDE PEREIRA DA SILVA)

RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO

EMENTA

REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVA. REQUISITOS. O norte da regra do art. 149, do Código Penal é a criminalização do trabalho degradante ou trabalho forçado. O caput da norma enumera diversas condutas, ao empregar o vocábulo quer, de modo que, basta uma delas e não a combinação de todas para a configuração do tipo penal. O § 1º, da regra também não permite a ilação de que, as condições que estabelece tenham que ser cumulativas.

Dos elementos de prova existentes nos autos, resta patente que a obreira, empregada doméstica residente em imóveis da entidade familiar estava reduzida à condição análoga à de escrava, eis que, sujeita a condições degradantes de trabalho, percebendo salários em muito inferiores ao mínimo, quando os recebia, com limitações e impedimento de uso ao banheiro, recebendo comida e medicamentos de vizinhos, arcando com despesas dos empregadores, referentes à água e à luz e sofrendo descontos salariais para pagamento de rações de animais pertencentes aos empregadores, sofrendo, ainda, restrições à liberdade, à locomoção e acesso à sua pessoa, além de desamparo dos empregadores em momento de acidente.

Percebe-se que, a obreira, pessoa humilde, tinha medo dos empregadores e, além disso, tinha receio de não receber o que de direito.

Dentro desse contexto, criou-se uma espiral em que a trabalhadora, não conseguia se desvencilhar de sua lamentável situação. Recurso dos réus a que se nega provimento.

SEGREDO DE JUSTIÇA. REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVA. INTERESSE PÚBLICO. AUSÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS LEGAIS PARA O SIGILO. O sigilo estendido aos autos, não se justificava, porque não há interesse público a ser preservado e que o fundamentasse. Ao contrário o interesse público é para que se dê a publicidade, diante da gravidade dos fatos versados na causa.

De outra parte a publicidade viabilizará, também a consulta sobre este tema, no sítio do TRT, com sói acontecer em relação a decisões sobre o assunto, em sítios de outros Tribunais, inclusive o TST.

Veja-se, ainda que, a retirada do sigilo servirá até para se facilitar o manuseio dos autos. Ressalte-se ademais que, a própria tramitação dos autos perante esta Corte fica difícil, com o segredo de justiça que não se justifica.

Ademais, o feito não envolve a hipótese dos incisos II a IV, da regra acima.

Relativamente ao alcance do inciso III, do art. 189, do CPC/2015, a regra diz respeito a dados pessoais, "protegidos pelo direito constitucional à intimidade", tais como, extrato bancário, informações fiscais, ou ainda informação de gravidade sobre o estado de saúde do requerente, e que constem do processo, não se confundindo esse direito de proteção com pretensão a resguardo quanto aos fatos debatidos no processo, ou à repercussão que os mesmos venham a gerar. Ou seja, a regra legal sob comento não incide na hipótese do feito. Requerimento de retirada do sigilo pelo MPT que se defere.

RELATÓRIO

Contra a r. sentença de ID. 599d359, integrada pela decisão de em sede de embargos de declaração de ID. d5c0f39, cujo relatório adoto e que julgou procedente em parte a ação civil pública, as partes interpõem recurso ordinário.

Os réus, com as razões de ID. 0c22958, requerendo a reforma da sentença alegando que, a Procuradora do MPT passou por cima dos procedimentos legais, gerando-lhes prejuízos pessoais, inclusive não contando a diligência com a presença de um fiscal do trabalho e que não há vínculo empregatício da Sra. Neide, a qual fazia faxina para toda a vizinhança em troca de dinheiro, inexistindo trabalho análogo ao de escrava. Em sede de preliminares invocam: cerceamento na produção de prova testemunhal, ilegitimidade do MPT para defesa de direitos individuais não homogêneos (direitos individuais em sentido estrito); inépcia da inicial, por ausência de liquidação de valores pleiteados. Alegam que, por conta da aplicação da prescrição quinquenal, a corré Sônia deveria ter sido excluída da lide, assim como a restrição do imóvel da Rua Coelho de Carvalho, n.º 580, eis que, incontroverso que a mesma se mudou para Itapevi em 2011, sendo que a referida corré não participava da dinâmica da casa da ré Sra. Mariah, inexistindo unidade familiar. Invocam a aplicação da Súmula n.º 206, do Colendo TST. Sustentam que: Neide, de 1998 a 2011, se ativava como diarista em várias residências "dentre as quais, da avó de Mariah, mãe da recorrente Sônia", nascendo "um vínculo de consideração pessoal"; o relacionamento e a prestação de serviços eventuais de diarista "cessaram em 2011 porque a mãe e a avó de Mariah se mudaram para Itapevi"; o imóvel residencial "onde residia a avó de Mariah (Rua Coelho de Carvalho, 536) permaneceu vazio e foi colocado à venda" e a Sra. Neide, "que então residia em sua própria casa à Rua Croata, continuou levando sua própria vida"; em 2011 a referida casa "foi interditada pela Defesa Civil e veio a ruir inteiramente após uma enchente" e a avó da ré Mariah ofereceu a Neide o imóvel da Rua Coelho de Carvalho n.º 536, mediante Neide apenas arcar com as despesas com água e luz e que passou a residir sozinha no imóvel; no interregno a Neide prestava serviços de diarista para várias residências; com a venda do imóvel em 06/102016, foi solicitada a desocupação do imóvel, mas Neide disse que não tinha para onde ir; posteriormente "como a família necessitava entregar o imóvel vendido ao comprador, a mãe de Mariah ofereceu à Sra. Neide a possibilidade de ela acomodar os seus poucos pertences em uma edícula existente nos fundos da casa de sua propriedade, onde Mariah residia e que ficava na mesma rua (Rua Coelho de Carvalho, 580), edícula esta que "não era uma residência e serviria apenas para a Sra. Neide guardar temporariamente os seus pertences"; Neide "levava cachorros de várias famílias para passear", assim como, "com outros cachorros da vizinhança, levava também os cachorros de Mariah, atividade que se interrompeu em fevereiro de 2020"; durante a pandemia, "a Sra. Neide vinha eventualmente dormir na edícula, embora às vezes passasse muitos dias sem aparecer por ali" e que ela "mantinha um razoável estado de limpeza na parte do quintal adjacente à edícula, lavando o piso quando os cachorros, inclusive aquele que lhe pertence, sujavam aquele espaço"; a edícula não era espaço destinado à moradia, mas à guarda de pertences de Neide; não havia proibição do uso de banheiro na casa, nem vedação de acesso a esta; em maio/2020, a corré Mariah e o marido decidiram se mudar para Itapevi, comunicando o fato a Neide, sendo que a mudança ocorreu nos dias 14 e 16 de junho/2020, sendo que, no dia 18 do referido mês, ocorreu a operação policial. Argumentam que: não houve vínculo de emprego, estando ausentes os requisitos legais; não havia interferência nas relação de trabalho de Neide com os vizinhos, a qual era autônoma; a cessão de espaços sempre foi gratuita; não houve acidente doméstico, sendo que provavelmente Neide se machucou fora da casa; não houve recusa de auxílio; não houve discussão com o reclamado Dora, mas desentendimento por conta do uso de máscara durante a pandemia; a corré Mariah demonstrou preocupação com o bem estar de Neide, ao buscar consultoria sobre o benefício de prestação continuada para ela; em conversa Neide disse que iria almoçar com um amigo, de modo que não havia exposição a trabalho escravo. Questionam a interpretação atribuída à prova dos autos. Subsidiariamente requerem a redução da condenação quanto às indenizações dos danos morais individuais e coletivos. Questionam também os honorários de advogado, as horas extras, verbas trabalhistas e sanções legais e sustentam a incapacidade da ré Mariah para fins de anotação da CTPS. Requerem justiça gratuita. Recurso tempestivo, regular e com preparo sob ID's 9ad9ea3, 2ab5ac5, 010c3c1, f0230a7, d5ed9ab, c60da6c, aa46a2e, a37a288, 69312da, 98a490a, fdec79d, ef40064, ac06e06 e d0a3c09.

A Defensoria Pública da União, representando Neide Pereira da Silva, com as razões de ID. b3fafce, pretende a reforma da sentença, alegando a impossibilidade de reconhecimento de prescrição quinquenal na hipótese de trabalho análogo a escravo, necessidade de pagamento dos seguintes títulos: pensão mensal pela vulnerabilidade da representada até o final do processo, indenização em virtude da não concessão de aposentadoria por idade no período de janeiro de 2019 até o trânsito em julgado da sentença eindenização por dano material pela ausência de registro do contrato de trabalho na CTPS e por ausência de recolhimentos previdenciários. Recurso tempestivo, regular e isento de preparo.

O autor, com as razões de ID. a490631, requerendo a reforma da sentença, alegando a necessidade de pagamento de um salário mínimo até o fim do processo, mediante concessão de tutela de urgência, por conta da situação de vulnerabilidade da vítima do trabalho escravo, inaplicabilidade da prescrição quinquenal na hipótese de trabalho análogo a escravo, bem como, pleiteando: indenização em virtude da não concessão de aposentadoria por idade até o trânsito em julgado da sentença; pagamento dos valores correspondentes à aposentadoria por idade no valor de um salário-mínimo, desde o dia 03/01/2019 até o trânsito em julgado; indenização pelo dano material pela ausência de registro da CTPS e por falta de recolhimento das contribuições previdenciárias; majoração da indenização por danos morais individuais e coletivos. Recurso tempestivo, regular e isento de preparo.

Contrarrazões: ID´s b5c7129 e cda9f75 (réus); ID´s. ed14eb7 e e9dc0a6 (Defensoria); ID. ac24ee6 (MPT).

É o relatório.

FUNDAMENTAÇÃO

VOTO

1) CONHECIMENTO

a) De início, CONHEÇO dos apelos interpostos pelos réus e pela Defensoria Pública da União (representando Neide Pereira da Silva), por presentes os pressupostos de admissibilidade.

b) Em contrarrazões, sob ID. cda9f75, os réus alegam que o apelo do MPT, não deve ser conhecido, no tocante à majoração da indenização do dano moral individual, diante de preclusão consumativa, eis que Defensoria Pública, não apresentou recurso específico quanto ao tema, não devendo ser conhecido este item do recurso do MPT.

O MPT tem legitimidade para recorrer, ex vi do art. 996, do CPC/2015, sendo certo que, o apelo devolve ao Tribunal toda a matéria impugnada (art. 1.013, do mesmo Código).

A legitimidade do MPT para ingresso da ação e o cabimento ou não do direito serão examinados em momento próprio do voto.

Ante o exposto, CONHEÇO do recurso do MPT, por presentes os pressupostos de admissibilidade.

2) ILEGITIMIDADE DO MPT PARA DEFESA DE DIREITOS INDIVIDUAIS NÃO HOMOGÊNEOS/RECURSO DOS RÉUS

Consoante o art. 127, da Constituição Federal, ao Ministério Público (o que inclui o Ministério Público do Trabalho) incumbe "a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis" (de idêntico teor o disposto no art. 176, do CPC/2015, sendo que, no art. 179, do mesmo Código estabelece que, o MP "exercerá o direito de ação em conformidade com suas atribuições constitucionais").

Além da incumbência de promover a defesa dos interesses individuais indisponíveis, o Ministério Público poderá exercer outras atribuições previstas em lei, desde que compatível com sua finalidade institucional (art. 129, da Constituição Federal).

A Lei Complementar n.º 75/1993, em seu art. 6º, VII, estabelece que compete ao Ministério Público da União, promover o inquérito civil e a ação civil pública para "a proteção dos interesses individuais indisponíveis, difusos e coletivos, relativos às comunidades indígenas, à família, à criança, ao adolescente, ao idoso, às minorias étnicas e ao consumidor" (letra "c") e "outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos" ("d").

Já o inciso XIV, do referido artigo estatui que ao MP compete "promover outras ações necessárias ao exercício de suas funções institucionais, em defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, sendo que as hipóteses das letras "a" a "g", não são exclusivas mas preferenciais.

Quanto ao Ministério Público do Trabalho estabelece o inciso I, do art. 83, da Lei Complementar supra que compete ao Parquet "promover as ações que lhe sejam atribuídas pela Constituição Federal e pelas leis trabalhistas".

Por conta da expressa previsão constitucional, há interesse jurídico do MPT, para ajuizamento de ação civil pública por motivo da alegação de existência de trabalho em condição análoga à de escravo, que viola direitos individuais indisponíveis relativos à dignidade da pessoa humana e aos valores sociais do trabalho, ex vi do art. 1º, III e IV, da Constituição Federal, bem como, as disposições do art. 5º, III ("ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante"), X ("são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação"), XIII ("é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer"). Além disso, restam vulnerados os direitos do trabalhador, assegurados na forma do art. 7º, da Constituição Federal.

Destarte, despiciendas as alegações recursais sobre ausência de legitimidade do MPT, para ajuizamento de ação civil pública, por não envolver direito individual homogêneo.

Invoco precedente do Colendo STJ:

"PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MENOR SAÚDE. DIREITO INDIVIDUAL INDISPONÍVEL. ART. 227 DA CF88. LEGITIMATIO AD CAUSAM DO PARQUET. ART. 127 DA CF88. ARTS. 7.º, 200, e 201 DO DA LEI N.º 8.06990. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PELO ESTADO. DESCUMPRIMENTO DA DECISÃO JUDICIAL DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. BLOQUEIO DE VERBAS PÚBLICAS. MEDIDA EXECUTIVA. POSSIBILIDADE, IN CASU. PEQUENO VALOR. ART. 461, § 5.º, DO CPC. ROL EXEMPLIFICATIVO DE MEDIDAS. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À SAÚDE, À VIDA E À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PRIMAZIA SOBRE PRINCÍPIOS DE DIREITO FINANCEIRO E ADMINISTRATIVO. NOVEL ENTENDIMENTO DA E. PRIMEIRA TURMA.

1. O Ministério Público está legitimado a defender os interesses transindividuais, quais sejam os difusos, os coletivos e os individuais homogêneos.

2. É que a Carta de 1988, ao evidenciar a importância da cidadania no controle dos atos da Administração, com a eleição dos valores imateriais do art. 37, da CF1988 como tuteláveis judicialmente, coadjuvados por uma série de instrumentos processuais de defesa dos interesses transindividuais, criou um microssistema de tutela de interesses difusos referentes à probidade da administração pública, nele encartando-se a Ação Cautelar Inominada, Ação Popular, a Ação Civil Pública e o Mandado de Segurança Coletivo, como instrumentos concorrentes na defesa desses direitos eclipsados por cláusulas pétreas.

3. Deveras, é mister concluir que a nova ordem constitucional erigiu um autêntico 'concurso de ações' entre os instrumentos de tutela dos interesses transindividuais e, a fortiori, legitimou o Ministério Público para o manejo dos mesmos.

4. Legitimatio ad causam do Ministério Público à luz da dicção final do disposto no art. 127 da CF1988, que o habilita a demandar em prol de interesses indisponíveis.

5. Sob esse enfoque a Carta Federal outorgou ao Ministério Público a incumbência de promover a defesa dos interesses individuais indisponíveis, podendo, para tanto, exercer outras atribuições previstas em lei, desde que compatível com sua finalidade institucional (CF1988, arts. 127 e 129).

6. In casu, trata-se de Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, objetivando o fornecimento de medicamento para o menor Rafael Vailatti Favero, portador de cardiopatia congênita.

7. O direito à saúde, insculpido na Constituição Federal é direito indisponível, em função do bem comum, maior a proteger, derivado da própria força impositiva dos preceitos de ordem pública que regulam a matéria.

8. Outrossim, o art. 6.º do CPC configura a legalidade da legitimação extraordinária cognominada por Chiovenda como "substituição processual".

9. Impõe-se, ressaltar que a jurisprudência hodierna do E. STJ admite ação individual acerca de direito indisponível capitaneada pelo MP (Precedentes: REsp 688052RS, DJ 17.08.2006; REsp 822712RS, DJ 17.04.2006; REsp 819010SP, DJ 02.05.2006).

10. O art. 461, §5.º do CPC, faz pressupor que o legislador, ao possibilitar ao juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas assecuratórias como a "imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial", não o fez de forma taxativa, mas sim exemplificativa, pelo que, in casu, o sequestro ou bloqueio da verba necessária à aquisição de medicamento objeto da tutela deferida, providência excepcional adotada em face da urgência e imprescindibilidade da prestação dos mesmos, revela-se medida legítima, válida e razoável.

11. Recurso especial que encerra questão referente à possibilidade de o julgador determinar, em ação que tenha por objeto o fornecimento de medicamento necessário a menor portador de cardiopatia congênita, medidas executivas assecuratórias ao cumprimento de decisão judicial antecipatória dos efeitos da tutela proferida em desfavor de ente estatal, que resultem no bloqueio ou sequestro de verbas deste depositadas em conta corrente.

12. Deveras, é lícito ao julgador, à vista das circunstâncias do caso concreto, aferir o modo mais adequado para tornar efetiva a tutela, tendo em vista o fim da norma e a impossibilidade de previsão legal de todas as hipóteses fáticas. Máxime diante de situação fática, na qual a desídia do ente estatal, frente ao comando judicial emitido, pode resultar em grave lesão à saúde ou mesmo pôr em risco a vida do demandante.

13. Os direitos fundamentais à vida e à saúde são direitos subjetivos inalienáveis, constitucionalmente consagrados, cujo primado, em um Estado Democrático de Direito como o nosso, que reserva especial proteção à dignidade da pessoa humana, há de superar quaisquer espécies de restrições legais. Não obstante o fundamento constitucional, in casu, merece destaque a Lei Estadual n.º 9.90893, do Estado do Rio Grande do Sul, que assim dispõe em seu art. 1.º:

"Art. 1.º. O Estado deve fornecer, de forma gratuita, medicamentos excepcionais para pessoas que não puderem prover as despesas com os referidos medicamentos, sem privarem-se dos recurso indispensáveis ao próprio sustento e de sua família.

Parágrafo único. Consideram-se medicamentos excepcionais aqueles que devem ser usados com frequência e de forma permanente, sendo indispensáveis à vida do paciente."

14. A Constituição não é ornamental, não se resume a um museu de princípios, não é meramente um ideário; reclama efetividade real de suas normas. Destarte, na aplicação das normas constitucionais, a exegese deve partir dos princípios fundamentais, para os princípios setoriais. E, sob esse ângulo, merece destaque o princípio fundante da República que destina especial proteção a dignidade da pessoa humana.

15. Outrossim, a tutela jurisdicional para ser efetiva deve dar ao lesado resultado prático equivalente ao que obteria se a prestação fosse cumprida voluntariamente. O meio de coerção tem validade quando capaz de subjugar a recalcitrância do devedor. O Poder Judiciário não deve compactuar com o proceder do Estado, que condenado pela urgência da situação a entregar medicamentos imprescindíveis proteção da saúde e da vida de cidadão necessitado, revela-se indiferente à tutela judicial deferida e aos valores fundamentais por ele eclipsados.

16. In casu, a decisão ora hostilizada importa concessão do bloqueio de verba pública diante da recusa do ora recorrente em fornecer o medicamento necessário ao desenvolvimento de portador de cardiopatia congênita.

17. Por fim, sob o ângulo analógico, as quantias de pequeno valor podem ser pagas independentemente de precatório e a fortiori serem, também, entregues, por ato de império do Poder Judiciário.

18. Recurso especial desprovido".

(REsp n.º 869.843 - RS - 20060152570-3, 1ª Turma, data de julgamento: 18/09/2007, Relator Ministro Luiz Fux)

Inclusive o Colendo STJ editou tese a respeito, consubstanciada no tema 766:

"FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO PELO PODER PÚBLICO - I

1) O Ministério Público é parte legítima para pleitear tratamento médico ou entrega de medicamentos nas demandas de saúde propostas contra os entes federativos, mesmo quando se tratar de feitos contendo beneficiários individualizados, porque se refere a direitos individuais indisponíveis, na forma do art. 1º da Lei n.8.625/1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público). (Tese julgada sob o rito do art. 1.036 do CPC/2015 - TEMA 766)

Julgados: AgInt no REsp 1647125/MG, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/05/2019, DJe 20/05/2019; AgInt no AREsp 1170199/SP, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA,PRIMEIRA TURMA, julgado em 04/10/2018, DJe 10/10/2018; AgInt no RE no AgInt nos EREsp 1588315/MG, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, CORTE ESPECIAL, julgado em 19/09/2018, DJe26/09/2018; REsp 1681690/SP (recurso repetitivo), Rel. Ministro OG FERNANDES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25/04/2018, DJe 03/05/2018; REsp 1682836/SP (recurso repetitivo), Rel. Ministro OGFERNANDES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25/04/2018, DJe 30/04/2018. (Vide Informativo de Jurisprudência N. 624)(Vide Pesquisa Pronta)(Vide Repetitivos Organizados por Assunto)(Vide Repercussão Geral - Tema 262)(Vide Repetitivos - Tema 766)" (destaquei).

Ademais, o Estatuto do Idoso, consubstanciado na Lei n.º 10.741/2003, em seus arts. 62 e 63, possibilitam a intervenção do Ministério Público ainda que não haja risco para a vida e a saúde do idoso, sendo que, o art. 74, do referido Estatuto é claro ao atribuir a instauração do inquérito e da ação civil pública "para a proteção dos direitos e interesses difusos ou coletivos, individuais indisponíveis e individuais homogêneos do idoso" (destaquei).

No mesmo sentido, o art. 81, da Lei acima, que estabelece competência concorrente entre o Ministério Público, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, a OAB e "as associações legalmente constituídas há pelo menos 1 (um) ano e que incluam entre os fins institucionais a defesa dos interesses e direitos da pessoa idosa, dispensada a autorização da assembleia, se houver prévia autorização estatutária", para "as ações cíveis fundadas em interesses difusos, coletivos, individuais indisponíveis ou homogêneos" (destaquei).

REJEITO a preliminar de ilegitimidade de parte do autor, Ministério Público do Trabalho para o ajuizamento de ação civil pública.

3) INÉPCIA DA INICIAL/RECURSO DOS RÉUS

Quanto à ausência de liquidação dos pedidos, entendo que, o art. 840, da CLT é específico a dissídio individual (pois a regra está inserta no Capítulo III, do Título X, da CLT) e a hipótese dos autos é de ação civil pública, para a qual não há previsão expressa para liquidação dos pedidos.

Ainda que assim não fosse, consta dos autos apresentação de cálculos quanto aos pedidos do aditamento (vide a partir do ID. e03968b - Pág. 2), de modo que, restaria atendida a disposição consolidada.

REJEITO a preliminar de inépcia da inicial.

4) CERCEAMENTO NA PRODUÇÃO DE PROVA TESTEMUNHAL/

RECURSO DOS RÉUS

Os réus aduzem que foi indeferida a oitiva de três testemunhas, Ana Carolina, Daniel e Clélia, mediante a qual pretendia provar fatos de diferentes pedidos e que diante das circunstâncias do caso concreto, onde figuram três réus, seria a hipótese de oitiva de até 9 testemunhas.

Realmente constou da ata de audiência, o requerimento para oitiva das testemunhas acima, o qual foi indeferido, mas não houve apresentação de protestos, naquela sessão e, com a concordância das partes, foi encerrada a instrução processual (ID. f9448dd - Pág. 13).

No ato da própria audiência, não foi apresentada justificativa para a oitiva das referidas testemunhas e, além disso, houve concordância com o encerramento da instrução processual, de modo que, não há falar-se em prejuízo manifesto à parte, nos termos do art. 794, da CLT.

Os protestos foram consignados apenas em razões finais, apresentadas depois da audiência (ID. f03d6ee - Pág. 2/3). Não foi a primeira oportunidade para a consignação dos protestos, os quais deveriam ter sido oferecidos na audiência. Portanto, preclusa a oportunidade. Ausente o requisito do art. 795, da CLT, para fins de declaração da nulidade processual.

Ante o exposto, REJEITO a alegação de cerceamento do direito de produção de prova.

5) INEXISTÊNCIA DE TRABALHO ESCRAVO E VÍNCULO DE EMPREGO/RECURSO DOS RÉUS

De acordo com a sentença, os réus, na defesa, "admitiram a prestação de serviços por parte da Sra. Neide em favor da Sra. Sonia, no período de 1998 a 2011, como diarista, atraindo para si o ônus da prova de suas assertivas, nos termos do art. 373 do CPC, combinado com o art. 818 da CLT" e quanto ao período "entre 2011 e 2020, os réus negaram qualquer espécie de prestação de serviços por parte da vítima, ainda que como diarista", relatando que "no período de 2011 a 2017, a Sra. Neide morou sozinha na casa dos pais da Sra. Sonia, pagando somente água e luz" e que "com a venda da referida casa, foi cedida uma edícula na casa dos dois primeiros réus para que a Sra. Neide pudesse deixar seus pertences, situação que perdurou de 2017 a 2020".

Avaliando as provas de audiência e os testemunhos firmados na presença do MPT, do Delegado e do Coordenador do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de São Paulo que acompanharam a operação de resgate, a MM. Juíza Sentenciante entendeu "que restou demonstrado que a reclamante prestou serviços como empregada doméstica para a terceira ré no período de 1998 a 2011" e que demais disso, "no período de 2011 a 2017, em que pese morar sozinha na residência que era da mãe da terceira ré, restou comprovado que a Sra. Neide era responsável pela manutenção da referida casa, além de arcar com as contas de água e luza" e ainda, "no período de 2017 a 2020, a Sra. Neide passou a residir na edícula da casa dos dois primeiros réus".

Peço vênia para transcrever trechos da sentença:

"Examinando todas as provas dos autos, constato que, desde 1998, a Sra. Neide se ativou como verdadeira empregada doméstica dos réus. Inicialmente, sendo a Sra. Sonia beneficiária direta de seus serviços e posteriormente, prestando serviços para os dois primeiros réus e indiretamente para a terceira, eis que era proprietária do imóvel.

Portanto, diante do teor da defesa e prova testemunha, entendo que restou comprovado que a Sra. Neide efetivamente foi empregada doméstica dos réus no período de 1998 a 2020.

Incontroverso que os serviços prestados pela Sra. Neide beneficiaram a terceira ré (sua contratante direta) e toda a unidade familiar, primeira e segundo réus, que residiam no imóvel em que a empregada trabalhava.

Saliento que a unidade familiar não detém personalidade jurídica, razão pela qual a responsabilidade pela assinatura da CTPS ficará a cargo de um dos membros que a compõem.

Partindo desta premissa, todos os membros capazes da família, que foram beneficiados pelos serviços do empregado doméstico podem ser considerados coempregadores, respondendo solidariamente pelo contrato de trabalho".

Por entender presentes os requisitos previstos nos artigos 2º e 3º da CLT, foi reconhecido o vínculo empregatício "entre a Sra. Neide e os réus, no período de maio de 1998 e 18.06.2020, na função de empregada doméstica, com remuneração de um salário mínimo".

Foi determinado que os réus anotassem a CTPS de Neide e foi reconhecida a rescisão indireta do contrato de trabalho, "uma vez que os réus abandonaram a casa onde a empregada residia e trabalhava, deixando-a sem aviso e sem o pagamento de qualquer parcela" e que, ainda, "restou comprovado o descumprimento das obrigações trabalhistas por parte dos réus, como pagamento de férias, décimo terceiro salário e demais parcelas remuneratórias".

Quanto ao reconhecimento do trabalho análogo a escravo, a sentença assim se pronunciou:

"A diligência realizada, no dia 18.06.2020, para resgate da Sra. Neide do local onde residia e prestava serviços, culminou em um Auto de Prisão em Flagrante Delito da primeira ré (fl. 65), por entender o Delegado responsável que a conduta da ré se amoldou à figura típica do artigo Título I - Pessoa (artigos. 121 a 154)/Redução a condição análoga à de escravo (art. 149) (Consumado), Título I - Pessoa (artigos. 121 a 154)/Abandono de incapaz (art. 133)(Consumado), Título I - Pessoa (artigos. 121 a 154)/Omissão de socorro (Art. 135)(Consumado).

Além disso, todos os réus foram indiciados pelos crimes retro mencionados, conforme se depreende do boletim de ocorrência de fls. 66/71, uma vez que constatado na diligência que a "Sra. Neide residia num cômodo do imóvel destinado a depósito em condições precárias e degradantes, bem como não possuía acesso a nenhum dos banheiros do imóvel, impossibilitada de fazer suas necessidades básicas com dignidade."(fl. 69).

As testemunhas relataram ainda episódios de desrespeito verbal principalmente por parte do Sr. Dora, bem como episódio de omissão de socorro (fl. 70).

Desta forma, reconheço que os réus submeteram a trabalhadora Neide Pereira da Silva a condições análogas ao trabalho escravo".

No relatório do voto, constou o resumo do apelo dos réus, ao qual me reporto.

De início, não observo ausência de lisura, pelo fato de que, a diligência do dia 18/06/2020, não contou com Fiscal do Trabalho, como sustentam os réus.

Houve uma denúncia perante o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (ID. 8153160 - Pág. 1/6), a qual foi recebida pelo MPT que ingressou com a presente demanda, inicialmente para obter permissão judicial para "adentrar a residência da "Sra. Mariá" para fiscalizar e verificar a suposta ocorrência de trabalho em condições análogas à de escravo de trabalhador idoso, tomando as medidas cabíveis e promovendo eventual resgate" (vide ID. 8e80196 - Pág. 10).

A Superintendência Regional do Trabalho foi comunicada, pelo MPT de uma ação conjunta a ser realizada na semana de 15/06 a 19/06/2020 (ID. 39c2f62 - Pág. 1), mas em despacho fundamentado solicitou reunião para planejamento da ação (ID. ed15e91 - Pág. 1).

Em 17/06/2020, foi deferida "a autorização judicial, inaudita altera pars, para que o Ministério Público do Trabalho, a Secretaria Estadual de Justiça e Cidadania e a Superintendência Regional do Trabalho possam ingressar na residência da "Sra. Mariá" para fins de fiscalizar e verificar a suposta ocorrência de trabalho em condições análogas à de escravo da trabalhadora idosa indicada na denúncia apresentada e promover, se necessário, o resgate da trabalhadora" (ID. 7f61308 - Pág. 3).

Não obstante, após concessão da tutela, em 18/06/2020, foi efetuada diligência à Rua Coelho de Carvalho, n.º 580, a qual foi devidamente documentada (ID. 2fbd939, ID. 0c61b79, ID. bcab723, ID. 2562000, ID. ceed41c, ID. 285a47e, ID. 8262f98, ID. bbb1942) e da qual participaram a Representante do Ministério Público do Trabalho que firmou a inicial, o Delegado da 1ª Delegacia da Divisão de Proteção à Pessoa -DHPP, Dr. Rogério Barbosa Thomaz (que foi ouvido como testemunha) e o Coordenador do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de São Paulo, Sr. Ricardo Alves. Tendo em vista que, o cumprimento da ordem judicial envolveu diligência que foi realizada na presença da autoridade policial e de Coordenador de órgão de enfrentamento a tráfico de pessoas, não vejo nenhuma mácula no ato, tanto que os fatos apurados geraram Boletim de Ocorrência (consoante ID. 55286ba - ID. 55286ba - Págs. 2/7) desdobrando-se em prisão em flagrante da ré Mariah, sob os fundamentos constantes do auto de prisão em flagrante (ID. 55286ba - Pág. 1) e em investigação policial que concluiu "que as pessoas de MARIAH CORAZZA BARRETO USTUNDAG e DORA USTUNDAG são autores das condutas previstas nos artigos 133, §3º III, 135 e 149, todos do Código Penal da qual figura como vítima Neide Pereira da Silva (61 anos de idade)" (ID. ec04647 - Pág. 13).

Os testemunhos colhidos em audiência e na diligência, perante a Representante do Ministério Público do Trabalho, a Autoridade Policial e o Coordenador do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, envolvendo as testemunhas Claudete, Zolmira, Regina, Maria Inês, Tatiana (também ouvida em Juízo) e Rafael, revelam elementos suficientes para o deslinde do feito.

Passo a examinar o tema do vínculo empregatício.

Observo que, o ônus da prova era dos réus, na forma dos arts. 818, II, da CLT e 373, II, do CPC/2015, uma vez que, na maior parte do período debatido nos autos (salvo no período de 2011 a 2016 ou 2017), não negam a prestação de serviços de Neide, mas impugnam a sua qualificação jurídica.

Deste ônus não se desvencilharam, inexistindo elementos nos autos a demonstrar que, para eles a obreira se ativava como diarista ou autônoma.

Ao revés, a prova dos autos é robusta quanto à existência de vínculo empregatício.

Inicialmente, há que se ressaltar que, conforme inteligência dos arts. 2º e 3º, da CLT, são requisitos para a configuração de vínculo laboral: a) trabalho por pessoa física; b) pessoalidade; c) não-eventualidade (ou habitualidade); d) subordinação (ou dependência, nos termos da Consolidação); e) onerosidade (ou obrigação de retribuição).

No caso de empregado doméstico, os requisitos são os mesmos, observando-se que, o trabalho não tem finalidade lucrativa à pessoa ou à família, sendo realizado no âmbito residencial destas, por mais de dois dias na semana, conforme o art. 1º, da Lei Complementar n.º 150/2015:

"Art. 1o Ao empregado doméstico, assim considerado aquele que presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana, aplica-se o disposto nesta Lei".

Havia pessoalidade na prestação dos serviços por Neide, não havendo sequer menção nos autos de que ela poderia se fazer substituir por outrem.

Independentemente de a obreira ter confessado em audiência que residiu sozinha em imóvel da corré Sonia (pelo que se infere a partir de 2011 até 2017), a prova dos autos deixa indene de dúvidas que, Neide prestou serviços como empregada doméstica, inicialmente à corré Sônia mas estendendo-se aos demais réus, ao longo de todo o período reconhecido pela sentença, restando afastada a alegação de comodato de imóvel em prol da trabalhadora.

Vide o depoimentos da Sra. Claudete (ID. 0c61b79 - Págs. 1/3), Sra. Zolmira (ID. bcab723 - Págs. 1/3), Sra. Regina (ID. 2562000 - Págs. 1/3), Sra. Maria Inês (ID. ceed41c - Págs. 1/3), Sra. Tatiana (ID. 285a47e - Págs. 1/3, inclusive o depoimento prestado em Juízo - ID. f9448dd - Págs. 9/10) e Sr. Rafael (ID. 8262f98 - Págs. 1/3). A Sra. Claudete é específica quanto ao início dessa prestação de trabalho no ano de 1998. Pelo que se infere dessas provas, a prestação de labor se estendeu ao longo dos anos e até depois de 2011. A testemunha Rafael, inclusive afirma que Neide prestava serviços nas duas casas da mesma família "e que quando a "matriarca" Vendeu a casa ela se mudou da rua, e a Sr.a Neide veio para a casa onde foi encontrada a vítima". A testemunha Sr. Márcio, ouvida em Juízo asseverou que "é taxista com ponto na Rua Pio XI, cerca de 200 metros da casa da Sra. Sonia, desde 2006; que o depoente atendia a Sra. Sonia com muita frequência, fazendo corridas para a Sra. Sonia; que em razão disso encontrava com frequência com a Sra. Neide; que o depoente pegava produtos químicos para a Sra. Sonia e levava para a casa e a Sra. Neide recebia; que toda vez que o depoente fazia atendimento para a Sra. Sonia, encontrava a Sra. Neide no portão para fazer a entrega; que a rua da Sra. Sonia era a principal perto do local que o depoente trabalhava, então passava em frente ao portão o tempo todo; que presenciava com frequência a Sra. Neide se deslocando da casa da Sra. Sonia para a casa dos pais da Sra. Sonia; que a casa dos pais da Sra. Sonia era na mesma calçada; que não sabe quanto a Sra. Neide auferia a título de salário; que a Sra. Sonia falava que a Sra. Neide era sua empregada e que era muito boazinha; que o depoente já entrou na casa da Sra. Sonia para entregar produto; que a Sra. Sonia passou por uma cirurgia há cerca de 6 ou 7 anos; que a Sra. Neide cuidava da Sra. Sonia, ajudando a inclusive tirar a roupa para tomar banho; que o depoente fazia muitas entregas de medicamentos em razão da cirurgia; ... que no período de 2011 a 2017 a Sra. Neide estava sempre na casa da Sra. Sonia; que nos últimos 4 anos a Sra. Neide estava na casa da Sra. Sonia, mas o depoente não a via mais com tanta frequência; que o depoente presenciava a Sra. Neide na casa dos pais da Sra. Sonia; que a Sra. Neide cuidava dos cachorros do pai da Sra. Sonia; que de 5 a 6 anos o depoente passou a ver o Sr. Dora na casa da Sra. Sonia; que a Sra. Mariah sempre morou na casa; que neste período não fez serviço de taxi para a Sra. Mariah; que no período que fazia atendimentos para a Sra. Sonia, o depoente prestava serviços diariamente; que normalmente, quando ia atender a Sra. Sonia, via a Sra. Neide na casa;... que de 2011 a 2014 o depoente via a Sra. Mariah na casa, mas não diariamente; que de 5 anos para cá o depoente passou a ver a Sra. Mariah diariamente..."

Esta última testemunha foi expressa em afirmar que, a corré Sônia se referia a Neide como "empregada", o que esvazia as alegações de eventualidade e que ela se ativava como autônoma.

Dentro desse contexto, não beneficia os réus a afirmação da testemunha Sr. Vanderly, conduzida rogo deles, no sentido de "que nunca se apresentou como empregada da Sra. Mariah". A propósito deste testemunho, o depoente a rigor nada esclareceu sobre a prestação de serviços (ou não) da obreira, não sabendo informar porque a obreira residia no imóvel que foi adquirido pelo filho, nem conhecimento da relação da corré Sônia com Neide, após a saída dela do imóvel. Também não beneficia os réus o depoimento da testemunha Sra. Rita, porque a mesma não conhece a obreira e não soube informar se a obreira trabalhou para as corrés Sônia e Mariah.

Uma vez que a obreira era empregada, daí decorre a subordinação jurídica dela, sendo despiciendas as considerações dos réus sobre a ausência de prova deste requisito do vínculo empregatício. O depoimento de Neide não beneficia os réus, pois a despeito dela ter mencionado em Juízo "que a Sra. Mariah e o Sr. Dora não passavam ordens para a depoente", restou provado que a obreira realizava atividades de doméstica, para as quais existe uma rotina de trabalho, inexistindo qualquer demonstração nos autos que a obreira pudesse recusar serviços.

Pela prova dos autos (testemunhos da Sras. Claudete, Zulmira e Regina), verifica-se que Neide se ativava como faxineira para outras casas e cuidava de cachorros dos vizinhos (e também dos cachorros pertencentes aos corréus Dora e Mariah), estas circunstâncias por si só, não interferem com o vínculo empregatício haja vista a continuidade (ou não-eventualidade) da prestação de serviços de Neide.

Ademais, exclusividade na prestação de serviços não é requisito de vínculo empregatício. Até porque a testemunha Regina, afirma que as faxinas nas residências dos vizinhos eram feitas por Neide quando os proprietários do imóvel viajavam.

Sobre as supostas contradições nos testemunhos da Sra. Tatiana no ID. 285a47e e o prestado perante o Juízo a quo e que, inclusive geraram retratação da testemunha (sobre a qual se manifestaram os réus em razões finais - ID. f03d6ee - Pág. 16), não vislumbro, propriamente discrepância. Com efeito, no ID. 285a47e, a testemunha em questão não diz expressamente que a obreira fazia faxinas para outrem. Ela disse que "a mesma prestava serviços como doméstica na residência da Sra. Sonia e em outra residência da região". Ou seja, a testemunha afirma que Neide era empregada doméstica em duas residências. Em Juízo a testemunha afirma "que a Sra. Neide não fazia faxina para vizinhos". Não há incoerência, portanto. Na retratação a testemunha relatou que, "sobre isso, a depoente esclarece que, a outra casa a que se referia seria a casa da mãe da Sra. Sônia, que a depoente quis dizer que a Sra. Neide trabalhava sim na casa da Sra. Sônia e na casa da mãe da Sra. Sônia e que confundiu-se na resposta por nervosismo". Na realidade, a retratação serviu apenas para tornar mais claro o que havia sido dito no ID. 285a47e. E, conforme assentado, há prova de prestação de serviços domésticos da obreira em prol da Sra. Sônia. De toda a sorte, repita-se, pouco importa que, ela se ativasse como faxineira para outras pessoas, porque exclusividade não é requisito do contrato de trabalho e, mais importante, os réus não demonstraram que Neide era diarista ou autônoma para eles.

Ainda que, seja incontroversa a mudança da corré Sônia, pelas provas dos autos, os serviços eram prestados para a família, o que preenche o requisito do art. 1º, da Lei Complementar n.º 150/2013, inicialmente para a corré Sônia, estendendo-se depois para os demais réus.

Descabe, portanto, a exclusão da lide da corré Sônia.

Diante dos termos da Lei Complementar supra e pela falta de registro da obreira, na época do início da prestação de serviços deladespiciendas as alegações recursais sobre a menoridade da corré Mariah e pelo fato de o corréu Dora não residir no Brasil, não havendo que se cogitar, portanto de vulneração ao disposto no art. 104, do Código Civil.

Relativamente à função a sentença reconheceu que Neide era empregada doméstica, não mencionando ou dando a entender que fosse caseira (que aliás é uma espécie de empregado doméstico, como o jardineiro, o motorista etc. desde que laborem nos moldes da Lei do Doméstico), pelo simples fato de mencionar que Neide era responsável pela manutenção da casa, o que não foge à realidade, pelo que se infere dos autos.

Também pelo que se depreende dos autos, inclusive depoimento dos réus, havia pagamento de salário, ainda que bem inferior ao mínimo e não todos os meses (veja-se, por exemplo, o depoimento da Sra. Claudete que relata que Neide recebia R$ 300,00 por mês). Merece registro o depoimento da Sra. Zolmira, no sentido de que, "Neide já residiu no quintal do seu imóvel como inquilina e nesta época quem efetuava o pagamento do salário de Neide era a Sra. Sonia", não havendo indícios de que essa informação tivesse sido passada à depoente diretamente pela trabalhadora.

Assim sendo, estão presentes todos os requisitos legais para o reconhecimento de vínculo de emprego, na forma reconhecida na sentença.

DESPROVEJO o apelo dos réus.

Acerca da configuração da condição análoga à de escravo, é necessário socorrermo-nos do art. 149, do Código Penal, na redação da Lei n.° 10.803/2003 que assim estabelece:

"Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:

Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

§ 1º - Nas mesmas penas incorre quem:

I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;

II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

§ 2º - A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:

I - contra criança ou adolescente;

II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem".

O norte da regra do art. 149, do Código Penal é a criminalização do trabalho degradante ou trabalho forçado. O caput da norma enumera diversas condutas, ao empregar o vocábulo quer, de modo que, basta uma delas e não a combinação de todas para a configuração do tipo penal. O § 1º, da regra também não permite a ilação de que, as condições que estabelece tenham que ser cumulativas.

Interpretando o disposto no art. 149, do Código Penal, registro precedente do Excelso STF:

"EMENTA PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO. ESCRAVIDÃO MODERNA. DESNECESSIDADE DE COAÇÃO DIRETA CONTRA A LIBERDADE DE IR E VIR. DENÚNCIA RECEBIDA. Para configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima "a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva" ou "a condições degradantes de trabalho", condutas alternativas previstas no tipo penal. A "escravidão moderna" é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa "reduzir alguém a condição análoga à de escravo". Não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalhoescravo. Se a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art. 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o tratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade e de sua dignidade. Denúncia recebida pela presença dos requisitos legais".

(Inq. 3412, Tribunal Pleno, Relator: Min. Marco Aurélio, Redatora do Acórdão: Min. Rosa Weber, data de julgamento: 29/03/2012, data da publicação: 12/11/2012)

No mesmo sentido, o Colendo STJ:

"RECURSO ESPECIAL. REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. CONDENAÇÃO EM 1º GRAU. AFASTAMENTO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM PORQUE NÃO CONFIGURADA RESTRIÇÃO À LIBERDADE DOS TRABALHADORES OU RETENÇÃO POR VIGILÂNCIA OU MEDIANTE APOSSAMENTO DE DOCUMENTOS PESSOAIS. CRIME DE AÇÃO MÚLTIPLA E CONTEÚDO VARIADO. SUBMISSÃO A CONDIÇÕES DE TRABALHO DEGRADANTES. DELITO CONFIGURADO. CONDENAÇÃO RESTABELECIDA. RECURSO PROVIDO.

1. Nos termos da jurisprudência desta Corte, o delito de submissão à condição análoga à de escravo se configura independentemente de restrição à liberdade dos trabalhadores ou retenção no local de trabalho por vigilância ou apossamento de seus documentos, como crime de ação múltipla e conteúdo variado, bastando, a teor do art. 149 do CP, a demonstração de submissão a trabalhos forçados, a jornadas exaustivas ou a condições degradantes. Precedentes.

2. Devidamente fundamentada a condenação pela prática do referido delito em razão das condições degradantes de trabalho e de habitação a que as vítimas eram submetidas, consubstanciadas no não fornecimento de água potável, no não oferecimento, aos trabalhadores, de serviços de privada por meio de fossas adequadas ou outro processo similar, de habitação adequada, sendo-lhes fornecido alojamento em barracos cobertos de palha e lona, sustentados por frágeis caibros de madeira branca, no meio da mata, sem qualquer proteção lateral, com exposição a riscos, não há falar em absolvição.3. Recurso especial provido para restabelecer a sentença condenatória, determinando que o Tribunal de origem prossiga no exame do recurso de apelação defensivo".

(REsp n.º 1.843.150 - PA - 2019/0306530-1, 6ª Turma, data de julgamento: 26/05/2020, Relator Ministro Nefi Cordeiro)

Observo que, no início, a obreira, embora não registrada, recebia salário mínimo, na condição de empregada doméstica e morava em imóvel não pertencente a membros da família dos réus, mas a sua situação jurídico-pessoal foi se deteriorando ao longo dos anos, chegando a extremos, não apenas pelo pagamento de salário muito inferior ao mínimo, mas envolvendo a liberdade da obreira.

Anoto que, em depoimento prestado ao MPT, a obreira reconhece que: "Que foi contratada para realizar os serviços de doméstica e no início morava em uma residência com três amigas em uma casa próxima a cada que reside atualmente dividindo entre todas as despesas do local. Que no início recebia seu salário normalmente equivalente a um salário vigente na época e no ano de 2011 passou a residir em um imóvel desta rua onde residia anteriormente a Dona Nilza, mãe da Sra. Sonia. Nesta ocasião passou a receber de forma irregular, havia mês que recebia aproximadamente R$ 400,00 e permanecia por aproximadamente entre dois a três meses sem receber salário".

Os testemunhos colhidos na diligência e as provas orais destes autos, revelam elementos suficientes para o deslinde do feito quanto ao tema.

Peço vênia para registrar trechos do depoimento do Delegado que participou da diligência, Dr. Rogério e que, foi ouvido como testemunha a rogo do autor: "a equipe do depoente foi convidado pelo Ministério Público do Trabalho junto com a Secretaria de Justiça para participar de um mandado de busca na residência dos reclamados; que chegando no local, encontraram apenas a Sra. Neide; que a casa estava trancada, mas a Sra. Neide tinha a chave do portão; que a Sra. Neide estava muito nervosa e se recusava a abrir o portão; que após muita insistência a Sra. Neide abriu o portão; que a Sra. Neide tinha apenas a chave do portão e do depósito que dormia; que inclusive o depoente testou as chaves para tentar abrir a casa e foi atestado que nenhuma das chaves era a correta; que, portanto, foi necessário arrombar a porta para constatar que não havia ninguém no interior da casa; que foi perguntado à Sra. Neide onde ela dormia; que foi constatado que ela um um depósito fora da casa, no quintal; que no depósito havia pertences da família, caixas, um sofá com um colchão que era onde ela dormia, utensílios de cozinha; que no local não havia banheiro; que a Sra. Neide falou que estava no local desde 2017; que a Sra. Neide falou que dormia diariamente neste local; que foi constatado que a casa estava vazia e desocupada; que a Sra. Neide demonstrou não ter conhecimento de que os moradores haviam se mudado do local; que o depoente insistiu para entender melhor a questão do banheiro, já que a depoente não tinha acesso; que a depoente informou que utilizava um balde ou abria um buraco no jardim; que para tomar banho esquentava a água no fogão; que a Sra. Neide estava muito nervosa e se negava a prestar informações; que em razão disso o depoente foi entrevistar os vizinhos; que os vizinhos foram aparecendo para querer prestar o seu depoimento; que em um período anterior a Sra. Neide tinha acesso a um banheiro localizado na área externa da casa, contudo, devido à pandemia, o banheiro foi trancado e a Sra. Neide não teve mais acesso; que ouviram os testemunhos dos vizinhos na própria casa; que antes da diligência o depoente fez pesquisas em relação aos moradores da casa; que verificou que os reclamados estavam morando em Itapevi; ...que na diligência, restou claro que no quarto havia uma pessoa morando; que na diligência foi perguntado à Sra. Neide se ela tinha a chave da casa e ela respondeu que tinha a chave do portão e do quarto dos fundos...

A testemunha pôde constatar que, a obreira residia em depósito ou edícula no imóvel, sem acesso à casa principal e a banheiro e que anteriormente havia acesso a banheiro, mas que foi fechado por conta da pandemia. Das fotos existentes nos autos verifica-se que havia um fogão no local e um colchão ou colchonete sobre um sofá (ID. 6dd6a41 - Pág. 7). Referido colchão foi dado à obreira pela testemunha Sra. Tatiana (ID. 285a47e - Págs. 1/3). Veja-se que os corréus Dora e Mariah, reconheceram que havia no local um fogão e uma geladeira. Na pia há panelas e o fogão estava em uso (ID. 6dd6a41 - Pág. 5). Da prova testemunhal também se colhe que a trabalhadora morava no imóvel da família, em edícula ou depósito.

Daí decorre que a tal edícula era utilizada não como depósito para a guarda de pertences da obreira, mas como moradia da obreira, pouco importando que, Neide tivesse sumido da vista dos vizinhos (fato confirmado por pelo menos duas testemunhas; vide testemunho da Sra. Tatiana no ID. 285a47e - por uns 15/20 dias e da Sra. Maria Inês - ID. ceed41c - Págs. 1/3, que deu a entender que isso ocorreu por umas três semanas).

A testemunha Sra. Claudete confirma que, a obreira "estava impedida de entrar na casa desde o corona vírus, porque ela sai para a rua" (ID. 0c61b79 - Págs. 1/3). Destarte, a obreira não tinha como usar o banheiro. Já a testemunha Sra. Zolmira afirmou que "Neide está sem acesso ao banheiro por aproximadamente três meses desde o início da pandemia" (ID. bcab723 - Págs. 1/3). A testemunha Sra. Maria Inês, confirmou que "não há banheiro na parte de baixo e que depois da gritaria a sra. Neide não teve mais acesso a casa nem ao banheiro" (a gritaria foi por conta de um cachorro). A testemunha Sra. Tatiana no ID. 285a47e, afirmou que, tinha conhecimento de que Neide "utilizava o banheiro da lavanderia do imóvel e quando Dora e Mariah recebiam visita no imóvel e se Neide estivesse tomando banho eles expulsavam Neide do banheiro para que os convidados pudessem utilizá-lo". Em Juízo esta testemunha asseverou "que a Sra. Neide costuma utilizar o banheiro da depoente; que apenas uma vez explicou o motivo pelo qual precisava utilizá-lo que foi em razão da Sra. Mariah estar recebendo visitas". A testemunha Rafael acrescentou "que sobre o uso dos banheiros narrava que não tinha acesso à água quente e que esquentava água no fogão para tomar banho" (ID. 8262f98 - Págs. 1/3).

Pelo que se depreende dos autos Neide tinha que utilizar banheiro fora da edícula e nos últimos meses não tinha acesso a banheiro.

Ao que se infere dos autos Neide foi tratada aos gritos em muitas ocasiões, ocorrendo não apenas uma discussão, por conta da não utilização de máscara (que é relatada pela testemunha Sra. Tatiana no ID. 285a47e, que dá a entender que foi mais de uma vez, inclusive).

Com efeito, a testemunha Sra. Zolmira relata que havia "gritos constantes" no interior do imóvel. A testemunha Sra. Regina aludiu a "muita gritaria" no imóvel e informa que a gritaria "era sempre proferida pelo morador homem do local" (portanto, o corréu Dora). A testemunha Sra. Maria Inês aludiu a uma discussão por conta de um cachorro (e depois dessa ocasião Neide sumiu por um tempo) e que a obreira "era muito xingada por seus patrões". A testemunha Sra. Tatiana no ID. 285a47e, também menciona gritarias "frequentes e sempre muito alto" e em uma ocasião Neide lhe disse que seria por conta do valor do salário ser baixo e pela realização de desconto, pelo corréu Dora para pagamento de ração dos cachorros que lhe pertenciam e à corré Mariah. Esta testemunha relata especificamente que a corré Mariah disse que Neide "é uma fodida". A testemunha Sr. Rafael relatou que, Neide "sempre sofreu maus tratos psicológicos, que os patrões são pessoas grossas, que todos na rua ouvem seus gritos". Esta testemunha também relatou que, "quando começou a pandemia a vítima saiu para passear com o cachorro e que o esposo da Mariah jogou água na vítima em seu retorno, gritando que ela não podia sair de casa". A testemunha Sra. Claudete relatou, inclusive que "tinha medo de vir até a casa quando ele (corréu Dora) estava por causa de seu jeito" e que "o Sr. Dora falava alto e outra língua".

Não havia fornecimento de comida, produtos de higiene e remédios para a obreira. A testemunha Sra. Claudete, informou que, "chegou a dar comida para a vítima pelo muro da vizinha" e que era a depoente "que dava comida, supérfluos, que todo domingo dava comida para a Dona Neide, mas não era a única". A testemunha Sra. Maria Inês disse que, "a Sra. Neide não recebia sequer comida, e que a depoente cansou de passar pelo muro sabonete, pasta de dentes, etc". A testemunha Sr. Rafael mencionou que, "por diversas vezes ajudou a vítima fornecendo comida, e que sabe que os demais vizinhos fornecem comida e remédio".

Pelo depoimento do Delegado Neide tinha as chaves do portão e da edícula, mas não a da casa (vide inclusive depoimento da testemunha Sr. Rafael). Pode parecer que tinha liberdade para ir e vir, inclusive por ter "sumido", por passear com cachorros dos réus Mariah e Dora e dos vizinhos e por ter afirmado em áudio acostado aos autos que iria almoçar com um amigo. Mas, se liberdade havia era mínima, havendo notícia de restrição dessa liberdade e, próximo da diligência, de cessação, diante de vários relatos de testemunhas que, inclusive tinham dificuldade de acesso para falar com a obreira (inclusive terceiros tinham essa dificuldade).

Neste sentido, os depoimentos da Sra. Claudete e Sra. Maria Inês (vide supra) e a testemunha Sra. Zolmira ("Que somente poderia chamar Neide quando o veículo dos proprietários não estavam na garagem" e que em "um episódio em que um funcionário do terreno vizinho que está em obras solicitou um copo com água e Mariah impediu que Neide desse água para esse funcionário"). A testemunha Sra. Maria Inês relatou que, "algumas vezes a Sra. Neide pulava o muro da vizinha para conseguir sair para a rua pela casa da vizinha". Por que isso? A chave não abria o portão? Ou este estava trancado e a trabalhadora não tinha a chave? A testemunha Sra. Maria Inês também relatou que após a gritaria sobre o cachorro, "a Sra. Neide foi impedida mesmo de sair com o cachorro; que na maior parte do tempo a Sra. Neide fica lá no quartinho; que a Sra. Neide não saía para lugar nenhum, e era pouco vista". A testemunha Sr. Rafael ao falar da mudança dos corréus Mariah e Dora, disse que "nem a Sra. Neide sabia, já que ficava trancada nos fundos da casa", a mesma "está trancada nos fundos da casa há cerca de três semanas", "o depoente sabe que a casa ficava trancada e que só quando eles acordavam por volta das 14 h e que até essa hora ela não podia entrar na casa". A testemunha Sra. Tatiana no ID. 285a47e, relatou que, "Dora permanecia bastante tempo no corredor do imóvel e Nei érea impedida de passar pelo corredor" e que na pandemia "Neide disse que iria sair para ir a uma farmácia e almoçar na vizinha mas recebeu como resposta de Mariah "se você sair vou te trancar para fora"". A referida testemunha, em Juízo asseverou "que no dia da mudança após a Sra. Mariah deixar a casa, a depoente percebeu que a Sra. Neide estava trancada e passaram uma sacola com medicamentos pelo muro da casa". Neste ponto, o depoimento coincide com o testemunho do Sr. Rafael. A testemunha Sra. Tatiana fez uma retratação, mas na realidade simplesmente tornou mais claro o que foi dito, aludindo que o episódio de Neide se encontrar trancada foi na época da mudança dos corréus Mariah e Dora. Portanto, aqui a rigor não há contradição da Sra. Tatiana.

Observo um detalhe importante. As testemunhas ouvidas pelo MPT, Autoridade Policial e Coordenador do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de São Paulo não ingressavam na casa. Pelo visto, conversavam com Neide, através do portão. Veja-se que, a testemunha Tatiana, no ID. 285a47e relatou que "Neide sempre foi impedida de receber visita e que nenhum dos vizinhos sequer entraram no imóvel para ver Neide".

Há notícia de um acidente sofrido pela obreira.

A testemunha Sra. Claudete relatou que, "Sobre esse machucado dela disse que ela conta que caiu no quintal e não estava conseguindo se mexer, que foi a depoente quem comprou remédio para a vítima, que os patrões estavam em casa e que segundo a Sra. Neide ela gritou mas não foi socorrida. Que a depoente ofereceu para levar a vítima ao pronto socorro mas que ela não quis ir por medo do coronavírus". A testemunha Sra. Zulmira também informou que "tomou conhecimento de que Neide havia caído no quintal e esta lhe disse que momento da queda passou a GRITAR, GRITAR e GRITAR (as maiúsculas estão no original), chegando a passar a noite chorando e gritando de dor mas Mariah e Dora não lhe socorreram bem como nem forma ver o que havia acontecido". A testemunha Sra. Maria Inês disse que, "há cerca de três semanas a Sra. Neide sumiu da vista dos vizinhos; que ela não via a Sra. Neide do seu quintal (que normalmente é possível ver), e que ficou preocupada porque não soube o que havia acontecido mas que soube que ela machucou feito, e que os patrões não deram nenhum tipo de assistência, e que da sua casa a depoente via a situação mas ficou com receio de interferir;...que a depoente ouviu gritos de uma discussão por causa do cachorrinho, que a dona Neide queria sair com o cachorrinho e que houve uma gritaria muito forte na casa e que foi depois disso que a Sra. Neide sumiu; que todos os vizinhos ficaram muito preocupados com a Sra. Neide, que só depois de um tempo soube que ela havia caído, ficado de cama, e não foi socorrida". A testemunha Sr. Rafael asseverou que "soube que vítima se machucou e sumiu, e que os vizinhos entraram em contato com ela e não conseguiram; que todos ficaram preocupados; que ninguém cuidou da vítima e que sabe que a Sra. Neide teve que recortar a própria roupa para tirar a roupa, e que estava sangrando, que esses fatos foram narrados pela própria Senhora Neide". Esta testemunha também afirmou que, "conversou com a Sra. Mariah quando a vítima se machucou, preocupado com os ferimentos e que a Sra. Mariah respondeu que a vítima não queria ajuda". A testemunha Sra. Tatiana, no ID. 285a47e, informou que: "Recorda-se que há aproximadamente 15 ou 20 dias Neide estava um pouco "desaparecida" e então no início da semana retrasada chamou a mesma no imóvel quando foi atendida por Mariah que questionou a presença da Sra. Neide e questionou os machucados da Neide, os quais já haviam sido percebidos pelo vizinho Rafael. Que Mariah chegou a contar uma história achando que Neide havia sido agredida em via pública fato que foi negado pela depoente pois todos na rua adoram Neide. Que então Mariah chamou Neide e permaneceram na garagem com a luz apagada. Neste momento questionou Neide sobre as lesões recebeu como resposta que havia caído no quintal e pela dor chegou a tirar a roupa com uma tesoura por não conseguir movimentar o braço. Que posteriormente com Neide, questionou se Mariah não teria lhe levado no hospital e então Neide disse a depoente que ficou por 3 dias gritando de dor e ninguém lhe acudiu. Que em nenhum momento Mariah lhe chamou para levá-la ao hospital". Em Juízo a referida testemunha disse "que soube por meio dos vizinhos(Sr. Rafael) que a Sra. Neide sofreu um acidente dentro da casa e que ela não era vista por estes vizinhos; qnão ouviu gritos, nem notícias nesse período em que esteve sumida; que o carro da família não estava na garagem no dia que soube do sumiço da Sra. Neide; que quando soube do retorno do carro da família, entrou em contato com a Sra.. Mariah para saber se algo tinha ocorrido; que nesta situação questionou a Sra. Mariah a qual informou que Sra. Neide havia chegado machucada da rua e que acreditava que alguém tinha batido nela".

Não vislumbrei aqui contradição no depoimento da Sra. Tatiana, como apontam os réus. A testemunha em questão não disse que a corré Mariah impediu o acesso da depoente a Neide quando do episódio do machucado no braço. De toda a sorte, a testemunha fez retratação que na verdade apenas tornou mais claro o que foi dito: "a depoente afirma que foi até a casa da Sra. Mariah junto com o Sr. Rafael, quando ficou sabendo que a Sra. Neide estava machucada, e que perguntou por ela, que a Sra. Mariah nessa ocasião disse que não sabia se ela estava em casa pois tinha acabado de chegar; que a Sra. Mariah disse que ela havia chegado machucada da rua e que achava que ela devia ter apanhado de alguém na rua, que a depoente insistiu pra ver a Sra. Neide, dizendo que fazia dias que não a via e que estava preocupada e que a Sra. Mariah ficou enrolando a depoente e por fim chamou a Sra. Neide com as luzes apagadas e que a depoente conseguiu falar com ela apenas à distância".

Considerando as restrições a que a trabalhadora era submetida, não vejo motivos para duvidar da palavra de Neide sobre o local em que ocorreu o acidente, a despeito das testemunhas não terem presenciado o fato. Contudo, isto não é o mais importante, pois, pelo que se infere dos autos, o fato é que os corréus Mariah e Dora tomaram conhecimento do estado de saúde da obreira e nada fizeram, sendo que o remédio para a obreira foi comprado pela Sra. Claudete, testemunha.

Relativamente à mudança dos corréus Dora e Mariah, a testemunha Sra. Claudete esclareceu que, "quando soube que estavam de mudança abordou a Mariah no portão e perguntou como ficaria a situação da Sra. Neide, e que a Sra. Maria respondeu que ela ficaria na casa mas que iria ter que pagar as contas, e que se não pagasse iriam desligar. Que a Sra. Neide ficar como responsável pelas contas de água e luz enquanto morasse na casa". Já a testemunha Sra. Regina afirmou que "no último domingo viu um caminhão de mudança parado em frente da residência de Mariah e Dora não sabe dizer se estes estavam fazendo mudança". A testemunha Sra. Maria Inês, ressaltou "Que na última sexta percebeu que os vizinhos haviam se mudado porque cessaram os barulhos de cachorros mas que ninguém fora comunicado, que a mudança se deu e modo silencioso, e sequer foi visto caminhão de mudança, que saíram na madrugada, que a casa está a venda há cerca de 4 ou 5 meses". A testemunha Sra. Tatiana no ID. 285a47e, comunicou que, "no domingo da presente semana visualizou caminhões de mudanças na residência em que Neide trabalhava e pode perceber que os proprietários do imóvel estavam de mudança" e após ter perguntado à Neide "se Dora e Mariah haviam se mudado e Neide não soube responder", ao que a testemunha "informou Neide que estes haviam se mudado e ela entrou em "desespero" porque não lhe falaram nada e ela precisa receber". Em Juízo a referida testemunha disse "que a depoente percebeu uma movimentação na casa, quando um caminhão de mudança parou na frente da casa, que não se recorda exatamente a data, mas que foi num domingo de manhã, um pouco antes da diligência determinada por este Juiz" e "que a Sra. Neide não sabia da mudança da Sra. Mariah porque quem avisou foi a depoente e outros moradores da rua". Já a testemunha Sr. Rafael asseverou que, "no último domingo viram que os donos da casa estavam se mudando, que o depoente veio tocar a campainha e que falou com a Sra. Neide e que ela ficou surpresa com a notícia de que eles haviam se mudado, pois nem a Sra. Neide sabia, já que ficava trancada nos fundos da casa". O Delegado que acompanhou a diligência também ressaltou que "a Sra. Neide demonstrou não ter conhecimento de que os moradores haviam se mudado do local".

Pelo que se constata dos autos, sequer a obreira foi comunicada da mudança. Os réus não demonstraram que avisaram a obreira.

A testemunha Sra. Zolmira informou que, "Sabe dizer que Neide chegou a pagar do próprio bolso ração para os cachorros de Mariah e Dora". A testemunha Sra. Tatiana, no ID. 285a47e, informou que, Neide sofreu desconto no salário para pagamento da ração e, em audiência asseverou "que presenciou também uma discussão entre o Sr. Dora e Sra. Neide quando o Sr.. Dora falou que iria descontar do pagamento R$ 300,00 da Sra. Neide o valor referente à ração dos cachorros ( R$ 50,00), segundo a depoente".

Embora empregada doméstica, a obreira também era responsável pelo pagamento das contas de luz e água do imóvel. Vide depoimento supra da Sra. Claudete e o abaixo da Sra. Tatiana: "Esclarece Neide não contava a verdade por medo e que as contas de água e luz do imóvel vinham sendo pagas por Neide segundo a mesma".

Dos elementos de prova existentes nos autos, resta patente que a obreira, empregada doméstica residente em imóveis da entidade familiar estava reduzida à condição análoga à de escrava, eis que, sujeita a condições degradantes de trabalho, percebendo salários em muito inferiores ao mínimo, quando os recebia, com limitações e impedimento de uso ao banheiro, recebendo comida e medicamentos de vizinhos, arcando com despesas dos empregadores, referentes à água e à luz e sofrendo descontos salariais para pagamento de rações de animais pertencentes aos empregadores, sofrendo, ainda, restrições à liberdade, à locomoção e acesso à sua pessoa, além de desamparo dos empregadores em momento de acidente.

Percebe-se que, a obreira, pessoa humilde, pelo que se infere dos autos, inclusive gravação acostada pelos réus, tinha medo dos empregadores mesmos e, além disso, tinha receio de não receber o que de direito. Destaco os seguintes testemunhos:

Sra. Claudete: "Que a Sra. Neide é pessoa simples e humilde e que já lhe ora oferecida ajuda mas que a vítima desconhece sua própria situação de vítima e recusou ajuda. Que a Sra. Neide disse que antes de sair da casa gostaria de receber seus direitos".

Sra. Zolmira: "Esclarece neste ponto Neide mentiu em suas declarações por medo pois Neide ainda tem esperança de receber o que lhe é de direito e por este fato acaba aceitando as condições que lhe deixavam".

Sra. Tatiana (ID. 285a47e): "Esclarece Neide não contava a verdade por medo e que as contas de água e luz do imóvel vinham sendo pagas por Neide segundo a mesma".

Dentro desse contexto, criou-se uma espiral em que a trabalhadora, não conseguia se desvencilhar de sua lamentável situação.

Não beneficia os réus o fato de que, na gravação acostada aos autos Neide falar que não lhe batiam e amigo e que os réus a ajudavam, quer porque a corré Mariah verificou junto a empregadora o que poderia ser feito para a obreira e pelo fato de que esta confessou em Juízo que a corré Sônia foi fiadora dela.

Veja-se que, não estamos falando de uma situação normal de trabalho, mas de uma forma de submissão da pessoa ao talante de outras que a explora, negando-lhes a condição de empregada e até de ser humano, na medida em que, as submete a uma condição definida por lei como análoga à de escravo.

Ante o exposto, NEGO PROVIMENTO ao apelo dos réus.

6) PRESCRIÇÃO/APRECIAÇÃO CONJUNTA DOS APELOS

A sentença pronunciou "prescrição quinquenal das pretensões condenatórias exigíveis anteriormente a 15.06.2015", ressalvando-se "os depósitos de FGTS, ante a redação da Súmula nº 362 do C. TST, em face do julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal".

As partes se insurgem.

Os réus, por entenderem que, cabe a aplicação da prescrição quinquenal, em relação à corré Sônia que deveria ter sido excluída da lide, assim como a restrição do imóvel da Rua Coelho de Carvalho, n.º 580, eis que, incontroverso que a mesma se mudou para Itapevi em 2011, sendo que a referida corré não participava da dinâmica da casa da ré Sra. Mariah. Requerem ainda a aplicação da Súmula n.º 206, do Colendo TST, em face do FGTS.

O MPT e a Defensoria Pública, sustentam a ação é imprescritível, pelo fato de a obreira estar reduzida à condição análoga à de escrava.

Inviável a declaração de imprescritibilidade da ação, diante da do disposto no art. 7º, XXIX, da Constituição Federal, o qual não faz qualquer ressalva quanto a trabalho escravo. Na seara trabalhista imprescritibilidade está restrita à hipótese do art. 11, § 1º, da CLT.

As considerações sobre aplicação de Tratados Internacionais e Julgamentos de Cortes Internacionais, indicadas em acórdão mencionado pelo MPT e Defensoria Pública envolvem matéria penal e não trabalhista.

Também não vislumbro o atendimento de hipótese de não fruição da prescrição, ausentes os requisitos dos arts. 197 a 200, do Código Civil.

Anoto que o caso concreto não se afeiçoa ao disposto no art. 3º, do mesmo Código, mormente a do inciso III. Em que pese a trabalhadora se tratar de pessoa humilde, temerosa dos empregadores, até porque contava em receber deles os seus direitos, mas não demonstrando ter ciência do estado a que se encontrava, a acima regra exige impossibilidade de poder exprimir a vontadenão havendo indícios dessa circunstância a viabilizar a aplicação da regra legal. Tanto é que pelo que se depreende do documento sob ID. 4e65743 - Pág. 3/4 (relatório da assistente social, datado de 23/06/2020, dias após o resgate de Neide), a obreira aparentemente "tem independência preservada para todas as atividades da vida prática como: se alimentar, fazer higiene pessoal, lavar suas roupas, vestir-se, se locomover. Também demonstra autonomia na realização das atividades instrumentais como: fazer compras, pagar contas, usar transporte público, preparar suas refeições, cuidar de sua saúde e de manter a própria segurança". Além disso, a assistente relatou que quanto à autonomia para tomada de decisões, acreditava que a obreira não precisaria de auxílio no momento.

NEGO PROVIMENTO ao apelo do MPT e da Defensoria Pública.

Quanto ao apelo dos réus, reporto-me ao decidido no item 5, deste voto, sobre o reconhecimento de vínculo empregatício entre a obreira e os réus, de modo que, descabe a aplicação da prescrição quinquenal, em relação à corré Sônia que deveria ter sido excluída da lide, assim como a restrição do imóvel da Rua Coelho de Carvalho, n.º 580, pouco importando a mudança dela para Itapevi.

Aliás, sobre o arresto, considerando-se a gravidade dos fatos alegados, a necessidade de garantia de bens para futura execução e tendo em vista os termos da decisão de ID. 8d8a6b0, no sentido de que, "que existe o perigo de risco ao resultado útil do processo, na medida em que o bem que poderia garantir uma futura execução foi colocado à venda pelos requeridos", destacando-se que, à época, "os documentos indicados pelo requerente evidenciam que um dos requeridos figura como devedor em Execução de Título Extrajudicial movida pelo Banco Itaú Unibanco no processo n. 1016145-20.2014.8.26.0004", da mesma forma que a MM. Juíza Sentenciante, entendo presentes, in casu, os requisitos dos arts. 300 e 301, do CPC/2015.

No tocante à incidência da Súmula n.º 206, do Colendo TST, não se aplica em face de valores referentes ao FGTS não recolhido à conta vinculada. Neste caso, incide a Súmula n.º 362, do Colendo TST, no caso o item II, corretamente aplicado aos autos.

Não se diga que a fundamentação não transita em julgado, considerando o disposto no art. 503, § 1º, do CPC/2015.

NEGO PROVIMENTO ao apelo dos réus.

7) HORAS EXTRAS/ANOTAÇÃO DA CTPS/VERBAS TRABALHISTAS/SANÇÕES FIXADAS NA SENTENÇA/

RECURSO DOS RÉUS

A sentença fixou a jornada de trabalho "como sendo de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h30min, com 30 minutos de intervalo para repouso e alimentação" e deferiu horas extras excedentes de 8 diários 44 semanais, bem como, uma hora extra diária, pela ausência de intervalo, com reflexos, inclusive por aplicação da Súmula n.º 437, I e III, do Colendo TST.

Os réus questionam a ausência de prova a respeito, por parte de Neide a quem incumbiria o ônus da prova.

Ao contrário, o ônus da prova era dos réus, ex vido art. 12, da Lei Complementar n.º 150/2013, combinado com os arts. 818, II, da CLT e 373, II, do CPC/2015 e Súmula n.º 338, do Colendo TST, aplicada por analogia. Com efeito, a regra complementar assim estabelece:

"Art. 12. É obrigatório o registro do horário de trabalho do empregado doméstico por qualquer meio manual, mecânico ou eletrônico, desde que idôneo".

Os réus não juntaram aos autos controles de ponto que demonstrassem jornada diversa e nem produziram prova apta a elidir a que foi reconhecida na sentença.

NEGO PROVIMENTO ao apelo no particular.

Os recorrentes alegam não cabimento da condenação da corré Mariah quanto à obrigação de anotação da CTPS da obreira, por impossibilidade jurídica, em período em que a corré Mariah era menor e aludindo a período em que o corréu Dora na residia no Brasil.

Reporto-me ao decidido no item 5, deste voto, relativamente ao preenchimento do requisito do art. 1º, da Lei Complementar n.º 150/2013, no sentido de que, os serviços eram prestados à família.

NADA a reformar no particular.

Os réus, sustentando a ausência de vínculo de emprego, também requerem a reforma da sentença, quanto aos seguintes itens: a) salários correspondentes aos meses de fevereiro de 2020 a maio de 2020 e saldo de salário b) aviso prévio indenizado, e sua integração ao tempo de serviço (art. 487, §1º da CLT e OJ 82 da SDI-1 do TST - 90 dias); c) férias vencidas, em dobro, correspondente aos períodos aquisitivos de 2015/2016, 2016/2017 e 2017/2018 e 2018/2019, férias vencidas, de forma simples, correspondente ao período aquisitivo de 2019/2020 e férias proporcional, computado o período de aviso prévio, todas acrescidas do terço constitucional; d) décimos terceiros salários referente aos anos de 2015, 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020 (computado o período de aviso prévio); e) depósitos do FGTS da contratualidade; f) diferenças salariais, durante o período imprescrito, considerando a diferença do salário mínimo e o pagamento de R$ 250,00 mensais até dezembro/2018 e R$ 300,00 a partir de janeiro/2019; g) multa prevista no artigo 477 da CLT.

Diante da manutenção da sentença, quanto ao reconhecimento de vínculo empregatício e, por conta do fato de que os réus não comprovaram o pagamento das verbas acima, ex vidos arts. 464, 477 e 818, II, da CLT, combinados com o art. 373, II, do CPC/2015, há que se manter a condenação.

Esclareço que, com a manutenção da sentença, quanto ao reconhecimento de vínculo empregatício e da redução à condição análoga à de escrava, está correta a sentença ao reconhecer a rescisão indireta do contrato de trabalho, "por cometimento de falta grave por parte dos empregadores (rescisão indireta), uma vez que os réus abandonaram a casa onde a empregada residia e trabalhava, deixando-a sem aviso e sem o pagamento de qualquer parcela" e porque "restou comprovado o descumprimento das obrigações trabalhistas por parte dos réus, como pagamento de férias, décimo terceiro salário e demais parcelas remuneratórias".

Esclareço, ainda que, a sentença está em conformidade com a Súmula n.º 462, do Colendo TST.

DESPROVEJO o apelo dos réus quanto aos aspectos acima.

Os réus também requerem a reforma da sentença quanto às multas estatuídas na sentença, à entrega dos documentos necessários para o saque do FGTS, anotação da CTPS e fornecimento de guias para seguro-desemprego.

A insurgência recursal não diz respeito ao cabimento das multas em si, mas por entender que a ação é improcedente. Com a manutenção da sentença, NADAa reformar.

Em resumo, sob qualquer ótica de análise, NEGO PROVIMENTO ao apelo dos réus.

8) INDENIZAÇÕES DOS DANOS MORAIS INDIVIDUAIS E COLETIVOS/

APRECIAÇÃO CONJUNTA DOS RECURSOS DOS RÉUS E DO MPT

Sobre as indenizações dos danos morais, a MM. Juíza Sentenciante assim se pronunciou:

"Diante do contexto fático-probatório, entendo que restaram demonstrados fatos capazes de ensejar o dano moral alegado, inclusive, em face do reconhecimento do trabalho em situação análoga ao trabalho escravo, reconhecido em tópico anterior.

Assim, em razão do reconhecimento do dano moral sofrido pela reclamante, em face dos fatos descritos na petição inicial, condeno os réus a pagarem à empregada a importância de R$ 250.000,00 a título de danos morais".

(...)

Feitas essas breves considerações, entendo que o trabalho análogo a escravo, já delineado nesses autos, constituir motivo apto a ensejar a indenização do dano moral coletivo.

Entendo que para a fixação do quantum indenizatório do dano moral coletivo, devem ser considerados o potencial ofensivo da conduta, sua repercussão na sociedade, a situação econômica das partes envolvidas, o proveito econômico obtido pelos ofensores na exploração do trabalho humano em condições degradantes, o tempo em que perdurou a situação, o grau de culpa e o caráter punitivo e pedagógico da indenização.

Diante do exposto, condeno os réus ao pagamento de danos morais coletivos, no valor de R$ 100.000,00, a ser revertido em favor Fundo de Amparo ao Trabalhador".

Em síntese, os réus preconizam a redução dos valores arbitrados e invocam o disposto no art. 223-G, da CLT.

Já o MPT, em resumo, pretende a majoração da indenização por danos morais individuais e coletivos.

De início, aprecio a alegação constante de preliminar nas contrarrazões do réus, quanto ao pleito do MPT para majoração da indenização dos danos morais individuais, por preclusão consumativa, eis que no recurso da Defensoria, apresentado anteriormente ao apelo do MPT, não houve pedido expresso naquele sentido.

Em que pese a atuação conjunta do MPT e da Defensoria, tanto que, apresentaram ação civil pública, entendo que, a atuação de um não prejudica a do outro. Trata-se de atuações independentes, conforme se depreende do art. 5º, da Lei n.º 7.347/1985, não havendo que se falar em preclusão consumativa como sustenta os réus.

Preliminar REJEITADA.

Entendo que descabe a aplicação do art. 223-G, da CLT, no caso específico dos autos, relativo à redução da obreira à condição análoga à de escrava. Com efeito, a regra em questão está atrelada ao disposto no art. 223-C, consolidado que, insere os bens imateriais sujeito à reparação dos danos extrapatrimoniais os seguintes: "A honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, a sexualidade, a saúde, o lazer e a integridade física".

O caso dos autos afeta outros direitos de índole constitucional, acerca de desrespeito à dignidade da pessoa humana, liberdade individual, e aos valores sociais e liberdade do trabalho e vedação de tratamento desumano ou degradante.

A existência de trabalho escravo afeta toda a coletividade, havendo respaldo para a indenização, nos termos do art. 1º, IV, da Lei n.º 7.347/1985.

A matéria debatida nos autos é gravíssima, não se justificando qualquer redução dos valores arbitrados, independentemente da alegada situação econômica dos réus e sequer cabalmente provada.

DESPROVEJO o apelo dos réus no particular.

Penso que, as indenizações arbitradas devem ser majoradas, considerando-se as peculiaridades do caso concreto, pois conforme assinalado anteriormente, dos elementos de prova existentes nos autos, resta patente que a obreira, empregada doméstica residente em imóveis da entidade familiar estava reduzida à condição análoga à de escrava, eis que, sujeita a condições degradantes de trabalho, percebendo salários em muito inferiores ao mínimo, quando os recebia, com limitações e impedimento de uso ao banheiro, recebendo comida e medicamentos de vizinhos, arcando com despesas dos empregadores, referentes à água e à luz e sofrendo descontos salariais para pagamento de rações de animais pertencentes aos empregadores, sofrendo, ainda, restrições à liberdade, à locomoção e acesso à sua pessoa, além de desamparo dos empregadores em momento de acidente.

Também conforme mencionado, a obreira era pessoa humilde e tinha medo dos réus e, além disso, tinha receio de não receber o que de direito, o que gerou uma espiral em que a trabalhadora, não conseguia se desvencilhar dessa deplorável situação.

No meu modo de entender, as reparações do dano moral a nível individual e coletivo têm que ser majoradas.

Diante do que consta dos autos e, com fundamento no art. 944, do Código Civil, DOU PROVIMENTO ao apelo do MPT para majorar as indenizações dos danos morais individuais e coletivos para R$ 350.000,00 e 300.000,00, respectivamente.

9) INDENIZAÇÕES NÃO DEFERIDAS NA SENTENÇA/APRECICAÇÃO CONJUNTA DOS APELOS DO MPT E DEFENSORIA PÚBLICA

A Defensoria Pública, pleiteia pensão mensal pela vulnerabilidade da representada até o final do processo, invocando os arts. 4º e 5º, do Estatuto do Idoso.

Data máxima vênia, entendo que o referido pedido, implica em, por via transversa, tornar definitiva uma execução provisória, em clara vulneração ao disposto no art. 899, da CLT, correndo-se o risco de, em caso de eventual reversão do acórdão, com improcedência da ação, a empregada dificilmente estar em condições de devolver os valores pagos, caso em que poderia (em tese) ter, em face de si, ajuizada execução, com o acréscimo de despesas próprias desta.

Ainda que assim não fosse, os arts. 4º e 5º, do Estatuto do Idoso, por si só, não dão guarida à pretensão recursal. A proteção ao idoso não equivale à indenização postulada.

DESPROVEJO.

A Defensoria Pública também pretende indenização em virtude da não concessão de aposentadoria por idade no período de janeiro de 2019 até o trânsito em julgado da sentença, aduzindo que a falta de registro da CTPS lhe impediu de se aposentar por idade, a partir da data supra.

Entendo que, descabe a referida indenização, ainda que a ausência de registro e de recolhimentos previdenciários, decorra de culpa dos réus. Não há amparo legal expresso para tal pretensão. A hipótese não se confunde com a dos arts. 186 e 927, do Código Civil.

Tendo em vista o decidido pelo Excelso STF no RE n.º 569056-3 - PA (Relator: Ministro Menezes Direito, data de julgamento: 11/09/2008 e data de publicação: 12/12/2008) e o teor da Súmula Vinculante n.º 53, que estabelecem que a execução das contribuições previdenciárias abrange apenas as derivadas do objeto da condenação constante das sentenças trabalhistas e dos acordos homologados nesta Especializada, não abrangendo, portanto, os recolhimentos previdenciários, por conta do reconhecimento de vínculo laboral, necessário será a comunicação ao INSS para promova as providências cabíveis, para cobrança das mesmas, o que viabilizará, em data futura que, a obreira possa se aposentar.

De igual modo, em face dos fatos reconhecidos na sentença, há que se oficiar à Superintendência Regional do Trabalho, para s providências cabíveis.

Observo que, aos Magistrados compete a defesa dos princípios e interesses da Justiça, podendo, legalmente praticar atos administrativos que decorram da sua jurisdição, o que inclui a expedição de ofícios aos órgãos competentes (artigos 680, "g", 753, "f" e 765 da CLT e 40, do CPP), no caso de ciência de irregularidades, como a do caso dos autos.

Assim sendo, DESPROVEJO o apelo da Defensoria, mas DETERMINO a expedição de ofício ao INSS e à Superintendência Regional do Trabalho para as providências cabíveis.

A Defensoria também apresenta item recursal envolvendo indenização por dano material pela ausência de registro do contrato de trabalho na CTPS e por ausência de recolhimentos previdenciários.

Contudo, o pleito recursal é outro:

"Promover a anotação do contrato de trabalho na CTPS da trabalhadora doméstica Neide Pereira da Silva, indicando os dados do contrato de trabalho no período entre 1º de maio de 1998 e 18 de junho 2020, data da rescisão por culpa do empregador e que seja declarada a rescisão indireta do contrato de trabalho doméstico, com baixa em CTPS coincidente com a data do resgate, devendo ser os réus condenados ao pagamento de aviso prévio e indenizações sobre o valor a ser calculado de FGTS".

Mas, tais pedidos foram deferidos, de modo que FALECE INTERESSE RECURSAL no ponto.

O autor, reivindica o pagamento de um salário mínimo até o fim do processo, mediante concessão de tutela de urgência, por conta da situação de vulnerabilidade da vítima do trabalho escravo.

Reporto-me ao decidido anteriormente em igual pleito recursal da Defensoria e observo que, a decisão judicial indicada no apelo diz respeito à possibilidade de execução de salários, ex vi do art. 833, § 2º, do CPC/2015, não guardando relação direta com a pretensão recursal.

DESPROVEJO o apelo no particular.

O MPT também pretende indenização em virtude da não concessão de aposentadoria por idade até o trânsito em julgado da sentença, além de pagamento dos valores correspondentes à aposentadoria por idade no valor de um salário-mínimo, desde o dia 03/01/2019 até o trânsito em julgado da sentença.

Reporto-me ao decidido anteriormente em igual pleito recursal da Defensoria, observo que o pagamento dos valores de aposentadoria nada mais é do que uma indenização que, é incabível, conforme se verá e DESPROVEJO o apelo no particular.

O MPT também postula indenização pelo dano material pela ausência de registro da CTPS, tampouco ter sido recolhidas as contribuições previdenciárias.

O exame do dano moral deve ser efetuado com base em parâmetro objetivo. Por conseguinte a lesão nasce de conduta que extrapole a singeleza ou a normalidade da vida. Diante da normatividade dos arts. 186 e 927, do Código Civil (de aplicação subsidiária, na forma do art. 8º, da CLT), mister se faz, ainda que, o causador do alegado dano no mínimo tivesse agido com culpa para a ocorrência da lesão.

Por conseguinte, violações a direitos trabalhistas do empregado (falta de registro, não pagamento de salários, 13º salários etc.), ensejam prejuízos de natureza material, os quais são reparados por meio de processo judicial (com o reconhecimento da lesão no processo de conhecimento e a sua reparação por meio das diversas hipóteses de execução), não implicando em dano moral.

Quantoindenização pela falta de recolhimentos previdenciários, ainda que, decorra de culpa dos réus, não há amparo legal expresso para tal pretensão. A hipótese não se confunde com a dos arts. 186 e 927, do Código Civil. Ademais, já foi determinada a expedição de ofício ao INSS para que intente as providências cabíveis, de cobrança das contribuições cabíveis.

Em resumo, DESPROVEJO o apelo do MPT.

10) JUSTIÇA GRATUITA /RECURSO DOS RÉUS

O requerimento foi rejeitado, sob o fundamento de que, "a demonstração da falta de capacidade econômica do empregador deverá ser demonstrada de forma inequívoca, não sendo suficiente a mera declaração de insuficiência de recursos" e que inexistia "prova inequívoca da incapacidade financeira dos réus".

O § 4º, do art. 790, da CLT que o benefício da justiça gratuita será concedido à parte que comprovar insuficiência de recursos para o pagamento das custas do processo, circunstância esta não constatada nos autos, sendo insuficiente para tanto, o fato de o imóvel na Rua Coelho de Carvalho, n° 580 (consoante da decisão de ID. 8d8a6b0 e ultimado na forma do ID. 618f082).

Quanto às declarações de hipossuficiência anexas nos ID´s. 6b2d018, ID. 1daa92e e ID. 05900cc, não são suficientes para acolhida do requerimento, em face da nova regulamentação do art. 790, da CLT, por conta da Lei n.º 13.467/2017.

A respeito, invoco precedente do Colendo TST:

"RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DA LEI Nº 13.467/2017 - JUSTIÇA GRATUITA - REQUISITOS- HIPOSSUFICIÊNCIA ECONÔMICA - COMPROVAÇÃO A presente ação foi ajuizada após a entrada em vigor da Lei nº 13.467/2017, que promoveu alterações em relação aos requisitos para o deferimento do benefício da justiça gratuita. Com a Reforma Trabalhista, não basta a mera declaração da parte de que não possui condições de arcar com as despesas do processo, sem prejuízo do seu sustento e da sua família, mas a efetiva comprovação da situação de insuficiência de recursos. Na hipótese, as instâncias ordinárias entenderam que o Reclamante não se desincumbiu do seu encargo, tendo em vista que as provas colhidas nos autos demonstram que a parte não era carente de recursos. Em razão disso, indeferiram-lhe os benefícios da justiça gratuita. A mudança desse entendimento encontra óbice na Súmula nº 126 do TST. Recurso de Revista não conhecido".

(RR-1000186-67.2018.5.02.0204, 8ª Turma, Relatora Ministra Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, DEJT 13/09/2019)

A corré Mariah não juntou aos autos a cópia da CTPS para demonstrar que após a saída de sua antiga empregadora, não mais obteve emprego. O corréu Dora não juntou aos autos cópia da CTPS para demonstrar que não está empregado. Também não comprovaram a insuficiência de recursos para custeio das despesas processuais.

Não se trata de refutar absolutamente a possibilidade de concessão dos benefícios da justiça gratuita à parte, mas de levar em conta se os requisitos legais foram preenchidos, à luz do ordenamento jurídico vigente, hipótese não evidenciada nos autos.

Ademais, os réus recolheram custas e depósito recursal e embora aleguem que fizeram empréstimo, não comprovam o alegado.

Por todo o exposto, NEGO PROVIMENTO ao apelo.

10) HONORÁRIOS DE ADVOGADO/RECURSO DOS RÉUS

A sentença condenou os réus "ao pagamento de honorários sucumbenciais no importe de 5%, sobre o valor que resultar da liquidação da sentença".

Sustentam os réus que, da maneira está a sentença há imposição para pagamento de honorários sucumbenciais ao Ministério Público do Trabalho, o que não é possível do ponto de vista legal.

Razão lhes assiste, não por conta de aplicação do princípio da simetria, decorrente da leitura do art. 18, da Lei n.º 7.347/1985, mas por incidência do disposto no art. 128, II, "a", da Constituição Federal.

Não houve recurso expresso em relação à Defensoria que é coautora na demanda.

DOU PROVIMENTO ao apelo e excluo a condenação de pagamento de honorários de advogado ao Ministério Público do Trabalho.

11) TUTELA INIBITÓRIA/RECURSO DOS RÉUS

Foram deferidas as seguintes tutelas inibitórias:

"1.Abstenham-se de manter empregado trabalhando sob condições contrárias às disposições de proteção do trabalho ou reduzido à condição análoga a de escravo, nos termos do art. 149 do Código Penal.

2.Não possam admitir ou manter empregado sempre com o respectivo registro em livro, ficha ou sistema eletrônico competente, nos termos do art. 41 da CLT, realizando as anotações da CTPS do trabalhador no prazo de 48 (quarenta e oito) horas do início das atividades (art. 29 da CLT).

3. Sejam obrigados a observar a duração normal do trabalho doméstico, que não excederá 8 (oito) horas diárias e 44 (quarenta e quatro) semanais, observado o disposto na lei complementar n° 150/2015, abstendo-se de submeter seus empregados a jornadas exaustivas ou que prejudiquem a sua integração social e o seu direito ao lazer.

4. Concedam intervalo para repouso ou alimentação pelo período de, no mínimo, 1(uma) hora e, no máximo, 2 (duas) horas, admitindo-se, mediante acordo prévio escrito entre empregador e empregado, sua redução a 30 (trinta) minutos, conforme art. 13 lei complementar nº150/2015.

5. Respeitem o período mínimo de 11 (onze) horas consecutivas para descanso entre 2 (duas) jornadas de trabalho, a teor do art. 15 da lei complementar n° 150/2015.

6. Concedam ao empregado doméstico o descanso semanal remunerado de, no mínimo, 24 (vinte e quatro) horas consecutivas, preferencialmente aos domingos, além do descanso remunerado em feriados, nos termos do art. 16 lei complementar n° 150/2015.

7. Efetuem o pagamento integral do salário mensal devido ao empregado doméstico, sempre até o 5° dia útil do mês subsequente ao vencido, a teor do art. 459 da CLT (subsidiária).

8. Efetuem o pagamento do décimo terceiro salário devido aos seus empregados até o dia 20 de dezembro de cada ano, conforme art. 7°, parágrafo único da CF c/c art. 1° da lei n° 4.749/1965.

9. Concedam ao empregado doméstico férias anuais remuneradas de 30 (trinta) dias, com acréscimo de, pelo menos, 1/3 do salário normal, após cada período de 12 (doze) meses de trabalho prestado, nos termos do art. 17 da lei complementar n° 150/2015, abstendo-se de lhe impor atividades laborais caso ele permaneça no local de trabalho durante as férias.

10. Depositem o percentual mensal referente ao FGTS, conforme art. 7°, parágrafo único da CF c/c art. 1° da lei n° 8.036/1990 e art. 21 da lei complementar nº150/2015.

11. Abstenham-se de efetuar qualquer desconto no salário do empregado doméstico por fornecimento de alimentação, vestuário, higiene ou moradia, bem como por despesas com transporte, hospedagem e alimentação em caso de acompanhamento em viagem, conforme art. 18 da lei complementar nº 150/2015.

12. Efetuem o pagamento das verbas rescisórias devidas aos seus empregados por ocasião da extinção do contrato de trabalho, nos prazos previstos no art. 477 da CLT.

13. Abstenham-se de agredir física ou psicologicamente seus empregados, quer seja através de agressões verbais, quer seja através de quaisquer outros abusos que atentem contra a honra, a imagem e a dignidade do trabalhador".

Os réus requerem "seja reformada a r. sentença quanto à tutela inibitória deferida" eis que, "não cometeram qualquer ilícito que ensejem uma tutela inibitória", inexistindo risco de cometimento de qualquer ilícito.

Mantida a sentença, creio que as tutelas inibitórias deferidas, que nada mais são do que determinações para cumprimento da legislação trabalhista, devem ser mantidas, até porque há respaldo do art. 497, parágrafo único, do CPC/2015.

DESPROVEJO no particular.

12) CONSIDERAÇÕES FINAIS

Descabe a expedição de ofício ao Ministério Público, por conta das supostas contradições no depoimento da testemunha Sra. Tatiana, primeiro porque inexistentes, conforme fundamentos delineados no corpo do voto e, segundo, porque ainda que assim não fosse, houve retratação, de modo que, há que ser observado o teor do art. 342, § 2º, do Código Penal.

Prejudicado o requerimento para expedição de ofício ao Ministério Público da União, formulado, em audiência, pelo Ministério Público do Trabalho, diante da juntada aos autos de sentença penal em face dos réus.

De outra parte, entendo oportuna a apreciação do requerimento do MPT para que seja reconsiderada a determinação para segredo de justiça, constante do ID. c3115b2, onde argumenta que, com a prolação da sentença, não mais se justifica o segredo.

Observo que, conforme petição sob ID. 70c3a78, o MPT requereu fosse retirado o segredo de justiça inicialmente concedido, por aplicação do art. 189, do CPC/2015 e para viabilizar validação de documento, o que foi deferido, ex vi do despacho de ID. 4f0427d - Pág. 1, in verbis:

"Requer o MPT a tramitação pública do feito vez que "não se vislumbra in casu nenhuma das hipóteses previstas no art. 189 do CPC", bem como "que a diligência já foi realizada, não havendo mais qualquer prejuízo à abertura dos autos". Defiro."

Contudo, na audiência sob ID. a3efbb6 - Pág. 1, constou o seguinte:

"Neste ato, os réus requerem que o presente processo tramite em Segredo de Justiça. Com a concordância do requerente, bem como diante dos fatos discutidos no presente processo, visando proteger o direito à intimidade, nos termos do art. 189, III, do CPC, defiro que o presente feito tramite sob segredo de justiça".

Não há impedimento legal para apreciação por esta instância e porque o tema pode ser apreciado de ofício, considerada a dicção do art. 189, do CPC/2015 (o qual apenas ampliou as hipóteses de sigilo, do art. 155, do CPC/1973).

Entendo que, o sigilo estendido aos autos, à luz da lei, não se justificava, porque não há interesse público a ser preservado e que o fundamentasse. Ao contrário o interesse público é para que se dê a publicidade, diante da gravidade dos fatos versados na causa.

De outra parte a publicidade viabilizará, também a consulta sobre este tema, no sítio do TRT, com sói acontecer em relação a decisões sobre o assunto, em sítios de outros Tribunais, inclusive o TST.

Veja-se, ainda que, a retirada do sigilo servirá até para se facilitar o manuseio dos autos. Ressalte-se ademais que, a própria tramitação dos autos perante esta Corte fica difícil, com o segredo de justiça que não se justifica.

Ademais, o feito não envolve a hipótese dos incisos II a IV, da regra acima.

Relativamente ao alcance do inciso III, do art. 189, do CPC/2015, a regra diz respeito a dados pessoais, "protegidos pelo direito constitucional à intimidade", tais como, extrato bancário, informações fiscais, ou ainda informação de gravidade sobre o estado de saúde do requerente, e que constem do processo, não se confundindo esse direito de proteção com pretensão a resguardo quanto aos fatos debatidos no processo, ou à repercussão que os mesmos venham a gerar. Ou seja, a regra legal sob comento não incide na hipótese do feito.

Anote-se, ainda que, o feito não envolve informações sensíveis das pessoas dos réus, nos moldes do inciso II, do art. 5º, da Lei n.º 13.709/2018.

Tampouco, o feito envolve as hipóteses de preservação de sigilo versadas na Lei n.º 14.289/2022.

Ante o exposto, independentemente do trânsito em julgado, defiro o requerimento do MPT e determino a RETIRADA do segredo de justiça destes autos.

Acórdão

Presidiu o julgamento a Excelentíssima Senhora Desembargadora Maria Elizabeth Mostardo Nunes.

Tomaram parte no julgamento os Excelentíssimos Senhores Magistrados Federais do Trabalho Jorge Eduardo Assad (Relator), Benedito Valentini (Revisor) e Paulo Kim Barbosa.

Votação: Unânime.

Sustentação Oral: Dr. Ricardo Pereira de Freitas Guimarães e Dra. Andréa Albertinase, pelo Ministério Público do Trabalho.

ACORDAM os Magistrados da 12ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região em: CONHECER dos recursos ordinários interpostos nos autos, REJEITADA a preliminar de não conhecimento do apelo do MPT, formulada nas contrarrazões do réus, REJEITAR as preliminares arguidas no recurso dos réus e, no mérito:

a) DAR PARCIAL PROVIMENTO ao apelo dos réus para excluir a condenação de pagamento de honorários de advogado ao Ministério Público do Trabalho.

b) NEGAR PROVIMENTO ao apelo da Defensoria Pública da União.

c) DAR PARCIAL PROVIMENTO ao apelo do Ministério Público do Trabalho para majorar as indenizações dos danos morais individuais e coletivos para R$ 350.000,00 e 300.000,00, respectivamente.

Determina-se a expedição de ofício ao INSS e à Superintendência Regional do Trabalho, para a providências cabíveis.

Independentemente do trânsito em julgado, determina-se, por fim, a retirada do segredo de justiça destes autos.

Tudo na forma da fundamentação do voto. Mantida no mais a sentença, salvo com relação aos valores da condenação e custas, ora rearbitrados em R$ 700.000,00 e R$ 14.000,00, respectivamente.

JORGE EDUARDO ASSAD

Juiz Relator

 

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