Data da publicação:
Acordão - TRT
Juliana Vignoli Cordeiro - TRT/MG
INCOMPETÊNCIA MATERIAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO - MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA
PROCESSO nº 0010140-79.2022.5.03.0110 (ED)
EMBARGANTE: CABIFY AGENCIA DE SERVICOS DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS LTDA.
EMBARGADO: WENDELL JUNIO RICARDO
RELATORA: DES. JULIANA VIGNOLI CORDEIRO
FUNDAMENTAÇÃO (ARTIGOS 163, § 1º, E 256 DO REGIMENTO INTERNO)
ADMISSIBILIDADE
Conheço dos embargos declaratórios opostos por CABIFY AGÊNCIA DE SERVIÇOS DE TRANSPORTES DE PASSAGEIROS LTDA., Id 967c141 (fl. 627), porquanto opostos a tempo e modo.
MÉRITO
Não há omissão no acórdão de Id a76e51a, porquanto o recurso foi apresentado pelo autor e a matéria nem sequer foi ventilada em contrarrazões pela ré.
Todavia, tratando-se de matéria de ordem pública, examino.
A tese inicial foi a de que o autor, pessoa física, prestava serviços de motorista, transportando passageiros.
Por pertinente, registre-se que a Justiça do Trabalho aprecia questões envolvendo empresas e o trabalhador - e não somente o empregado, haja vista o alargamento da sua competência material, nos termos da EC nº 45/2004.
Se a controvérsia em Juízo tem origem em relação de trabalho (serviço prestado por pessoa física) - e não em relação de natureza civil decorrente de contrato celebrado entre pessoas jurídicas, a competência para apreciá-la é desta Justiça Especializada.
Embargos parcialmente providos apenas para prestar esclarecimentos.
PRESCRIÇÃO
Pelos mesmos fundamentos anteriores, não há omissão no acórdão embargado, sobrelevando registrar ser descabido o exame da matéria, de ofício, na seara trabalhista, uma vez que viola os princípios informadores do Processo do Trabalho.
Embargos rejeitados.
A embargante aponta omissão no acórdão ao concluir pela existência de vínculo de emprego intermitente, conforme extensa argumentação lançada no Id 967c141.
Não há vício declaratório a ser sanado.
Esta d. Turma manifestou-se precisamente acerca das razões que influenciaram o livre convencimento motivado, concluindo pela presença de todos os elementos fático-jurídicos da relação de emprego, in verbis:
A aferição sobre a existência de vínculo de emprego na relação jurídica travada entre os litigantes é tema instigante (e complexo), que exige a averiguação de quatro elementos simultaneamente indispensáveis para a configuração da relação de emprego: a) pessoalidade; b) onerosidade; c) permanência ou não eventualidade; d) subordinação.
Tendo em vista a facilidade de utilização, comodidade e competitividade de preços, a utilização destas ferramentas digitais tem se tornado cada vez mais populares, em que o aplicativo possibilita e dinamiza a interação entre as pessoas interessadas no oferecimento de determinado serviço, quebrando diversos paradigmas não apenas nas relações de consumo, mas também no tocante às relações de trabalho.
A subordinação é a pedra de toque para diferenciar a relação empregatícia de outras formas de prestação de serviços. Todavia, o conceito clássico e tradicional da subordinação não mais se sustenta hodiernamente diante do desenvolvimento industrial e tecnológico e da evolução das práticas de negócios, como o caso em análise.
Conclui-se que, havendo interferência do tomador dos serviços no processo laboral, ou seja, na forma da concretização do trabalho prestado, verifica-se presente
o elemento subordinação, restando configurado o vínculo de emprego.
Nesse ponto, esclareço que, a meu ver, a relação havida entre a Cabfy Agência de Serviços de Transporte de Passageiros (e empresas de aplicativos afins) e os motoristas cadastrados realmente se caracteriza uma tentativa de burla à Lei Trabalhista.
E entendo que a subordinação se fez presente na espécie.
A autonomia do autor, conforme prova oral, é apenas aparente, visto que o motorista parceiro está sujeito ao cumprimento de regras, sob pena de ser suspenso ou descadastrado do aplicativo, conforme documentos de Id bf66aed (fl. 609) e Id 4b2c4b6 (fl. 459): exigência de carro com no máximo 5 anos de fabricação; ingerência direta na fixação do valor a ser pago pelo serviço prestado ao cliente, com fixação e alteração unilateral dos valores pela ré; estipulação de desempenho pessoal com possibilidade de avaliação pelos usuários.
O cliente não se dirige diretamente ao motorista, mas entra em contato com a ré, que, por sua vez, faz contato com os motoristas credenciados, oferecendo-lhes a prestação do serviço de transporte, pelo preço por ela própria estipulado.
Não vinga a tese de que o motorista poderia ficar ilimitadamente desconectado do aplicativo, ou que poderia recusar solicitações de modo ilimitado, porquanto a prática não condiz com a necessidade empresarial, inviabilizando a própria atividade.
Fica bastante evidente que a ré exerce seu poder regulamentar ao impor inúmeros regramentos que, se desrespeitados, podem ocasionar, inclusive, a perda do acesso ao aplicativo.
O controle destas regras e dos padrões de atendimento durante a prestação de serviços ocorre por meio das avaliações em forma de notas e das reclamações feitas pelos consumidores do serviço (cláusula quinta, Id 4b2c4b6, pág. 4, fl. 462).
Não se pode deixar de registrar também que a ré exerce o controle dos motoristas pela multidão de usuários, controle esse muito mais sutil, eficaz e repressor, realizado por todos e por ninguém.
Como já salientado, a ré concentrava em seu poder a política de pagamento do serviço prestado, seja em relação ao preço cobrado aos usuários por quilometragem rodada e tempo de viagem, seja quanto às formas de pagamento ou às promoções e descontos para usuários, não sendo dada ao motorista a possibilidade de gerência do negócio.
Em suma, o motorista trabalha controlado pela empresa /plataforma, pelo próprio aplicativo, instrumento essencial para a prestação dos serviços.
A ré se apresenta como uma empresa de tecnologia, mas, na verdade, atua objetivamente como uma empresa de transportes.
Veja-se que Cabfy utiliza os motoristas previamente cadastrados para desenvolver a sua atividade econômica, que é a prestação de serviços de transporte de passageiros.
Isso porque (relevante destacar) que os seus ganhos não decorrem do acesso ao aplicativo, mas dos serviços efetivamente prestados (o transporte de passageiros).
Não se pode negar que esta tecnologia trouxe benefícios para os consumidores, todavia, é inadmissível que ocorra em detrimento das condições dos trabalhadores.
Com efeito, mesmo sob a versão clássica, a subordinação se fez presente, visto que o motorista estava submisso a ordens sobre o modo de desenvolver a prestação de serviços.
Assim, havendo interferência do tomador dos serviços no processo laboral, ou seja, na forma da concretização do trabalho prestado, verifica-se presente o elemento subordinação, restando configurado o vínculo de emprego.
E sob o ponto de vista da subordinação objetiva e estrutural, a relação de emprego se fez presente, visto que o motorista presta serviço indispensável aos fins da atividade empresarial
Ainda que se admita que a região é nebulosa, a chamada zona grise, a atração da relação jurídica realiza-se para dentro da ordem jurídica trabalhista (e não para o Código Civil que pouco dignifica o trabalho humano), como forma de alcançar vários trabalhadores que permanecem excluídos da proteção do Direito do Trabalho.
O princípio da livre iniciativa não autoriza a fraude nas relações de trabalho, mas deve respeitar o valor social do trabalho e a dignidade da pessoa humana do trabalhador (artigo 1º, III e IV, da CR/88).
Vem a calhar a decisão proferida pelo Exmo. Juiz do Trabalho Márcio Toledo Gonçalves, nos autos do Processo 0011359-34.2016.5.03.0112, movido em face da Uber do Brasil Tecnologia Ltda., empresa que também atua nos mesmos moldes da Cabfy, que ora peço licença para replicar:
"Antes, prefacialmente, cabe a indagação: afinal, quais são os fins normais da reclamada? Trata-se de uma empresa de tecnologia que apenas faz a interface entre pessoas ou uma moderna empresa de transporte de passageiros?
Essa reflexão deve ser orientada, novamente, pelo Princípio da primazia da realidade sobre a forma, segundo o qual "em caso de discordância entre o que ocorre na prática e o que emerge de documentos ou acordos, deve-se dar preferência ao primeiro, isto é, ao que sucede no terreno dos fatos" (Américo Plá Rodriguez - Princípios do Direito do Trabalho).
Assim é que, embora os documentos em que constam o cadastro nacional de pessoa jurídica (id dbd1ace) e o contrato social (id 8cf0bcd) confirmem a tese da defesa no sentido de que a reclamada é empresa que explora plataforma tecnológica, não é essa a conclusão a que se chega ao se examinar, de forma acurada, a dinâmica dos serviços prestados.
Vejamos.
A doutrina define o contrato de transporte de pessoas da seguinte maneira: "(...) é o negócio por meio do qual uma parte - o transportador - se obriga, mediante retribuição, a transportar outrem, o transportado ou passageiro, e sua bagagem, de um lugar para outro." (GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. Dos contratos de hospedagem, de transporte de passageiros e de turismo.São Paulo: Saraiva, 2007 p.84-8).
Note-se que esse é exatamente o contrato firmado entre o usuário e a demandada quando uma viagem é solicitada no aplicativo. A reclamada define o preço a ser cobrado e escolhe unilateralmente o condutor responsável e o veículo a ser utilizado, sendo, por conseguinte, a fornecedora do serviço de transporte.
Tanto é que já há julgados responsabilizando a empresa por vícios na prestação de serviços decorrentes de erros do motorista na condução do veículo, podendo ser citado à guisa de exemplo o processo 0801635-32.2016.8.10.0013 tramitado no 8º Juizado Especial Cível e das Relações de Consumo de São Luís/MA. Não
poderia ser diferente diante da nítida relação de consumo entre ela e os usuários do aplicativo".
Nesse contexto, não é possível também acolher a tese no sentido de que o sistema gerenciado pela ré trata-se de modelo de economia compartilhada.
Passo à análise dos outros elementos fático-jurídicos da relação de emprego:
1) : Os elementos PESSOALIDADE dos autos revelam a necessidade de prévio cadastro pessoal do motorista, o que demonstra o caráter intuitu personae da relação jurídica (Id bf66aed, fl. 457).
2) ONEROSIDADE: E incontroversa. A ré ditava as regras do jogo em relação ao preço cobrado, retendo o seu percentual e repassando o restante aos motoristas (cláusula sexta, Id 7d3fddc, pág. 5, fl. 427). A propósito, pouco importa que o ganho do motorista não fosse custeado diretamente pela ré, porquanto é plenamente possível o trabalhador receber remuneração paga por terceiros.
Também não impressiona o fato de ser reservado ao motorista a maior parte dos valores pagos pelos clientes, visto que ele arcava com as despesas de manutenção do veículo.
3) NÃO EVENTUALIDADE: Os motoristas cadastrados atendem à demanda intermitente pelos serviços de transporte. Além disso, a presença deste elemento fático-jurídico na relação jurídica travada entre as partes fica ainda mais evidente sob o prisma da teoria dos fins do empreendimento que consagra não ser eventual o trabalhador chamado a desenvolver seus misteres para os fins normais da empresa (Godinho).
Arrematando, friso que a exclusividade não se insere entre os requisitos do artigo 3º da CLT.
Não muda o panorama dos autos a propalada ausência de controle da jornada, visto que os empregados que exerçam atividade externa também podem não ter a jornada controlada, o que não afasta o vínculo empregatício.
Some-se a isso o fato de que o parágrafo único do artigo 6º da CLT equipara os meios telemáticos e informatizados de supervisão aos meios pessoais e diretos de comando:
" Art. 6º. Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego.
Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio".
O fato de o autor ser o proprietário do veículo não muda o rumo dos autos. O instrumento mais importante não é o veículo, mas, sim, a plataforma digital, na medida em que é ela que aproxima o motorista do consumidor e, portanto, torna possível a prestação dos serviços.
Presentes todos os elementos fático-jurídicos da relação de emprego, com redobrada vênia aos entendimentos em sentido contrário, reconheço o vínculo de emprego havido entre as partes no período de 01.04.2017 a 09.07.2017, função motorista, conforme "histórico de viagem" de Id 0e59f60, fl. 422.
Embora o autor tenha vindicado o vínculo no período de
20.09.2016 a 02.06.2021, a ré contestou fundamentalmente a pretensão, no particular (contestação Id 18fc6da - pág. 44, fl. 396).
O autor não impugnou o "histórico de viagem" sob o prisma da data de duração do pacto laboral (ata de id 5e61b68, fl. 542).
A iniciativa de ruptura do pacto laboral foi da ré, sem justa causa. O princípio da continuidade da relação de emprego constitui presunção favorável ao empregado (Súmula 212 do TST).
Nesse contexto é da ré o ônus da prova da ruptura contratual por parte e iniciativa do empregado ou por justa causa.
Em conclusão, a ré deverá anotar o contrato de trabalho na CTPS do autor, fazendo contar admissão em 01.04.2017 e baixa em 09.07.2017, salário médio a ser reconhecido após apurado em liquidação de sentença, conforme documentos constantes dos autos e mencionados em articulados anteriores (garantido o mínimo legal), função motorista, fazendo constar contrato intermitente (petição inicial, Id e5fcdd9, pág. 2, fl. 3).
A obrigação supra deverá se cumprida no prazo máximo de 8 dias após intimação específica, sob pena de multa diária de R$ 100,00 (cem reais), até o limite de R$ 5.000,00 (cinco mil reais). O não cumprimento pela ré ensejará que a anotação da CTPS seja feita pela Secretaria da Vara, independentemente da execução da multa fixada e expedição de ofício à Gerência Regional do Ministério do Trabalho e Emprego para aplicação da penalidade administrativa.
Condeno a ré a pagar ao autor, observados os limites da inicial e do contrato intermitente: aviso prévio de 30 dias, 13º salário proporcional de 2017 (3/12); férias + 1/3 do período aquisitivo 2017/2018; multa do artigo 477, § 8º, da CLT e FGTS + 40% sobre as parcelas ora deferidas passíveis de incidência e de toda a contratualidade, a ser depositado em conta vinculada (artigo 26-A da Lei 8.036/1990, com a redação dada pela Lei 13.932/2019).
Devida a multa do art. 477 da CLT, conforme entendimento consubstanciado na Súmula 462 do TST.
Pelo contrato de trabalho intermitente, algumas verbas deveriam ser pagas ao final de cada período de labor (art. 452-A, §6º, da CLT), o que de fato não foi, devendo o pagamento ocorrer com a rescisão aqui reconhecida.
Registro que o autor não devolveu a matéria relativa ao dano moral.
Recurso parcialmente provido nesses termos.
Embargos desprovidos.
É inexigível o prequestionamento quando a violação indicada houver nascido na própria decisão recorrida (OJ 119 da SDI-1 do TST).
Conclusão do recurso
Conheço dos embargos de declaração aviados pela ré. No mérito,dou-lhes parcial provimento apenas para prestar esclarecimentos, nos termos da fundamentação, sem infringir efeitos modificativos ao julgado.
Acórdão
Fundamentos pelos quais, o Tribunal Regional do Trabalho da Terceira Região, em Sessão Ordinária da Egrégia Décima Primeira Turma, hoje realizada, julgou o referido processo e, à unanimidade, conheceu dos embargos de declaração aviados pela ré; no mérito, sem divergência, deu-lhes parcial provimento para prestar os esclarecimentos constantes da fundamentação do voto, sem infringir efeito modificativo ao julgado.
Tomaram parte neste julgamento os Exmos. Desembargadores Juliana Vignoli Cordeiro (Presidente e Relatora), Marco Antônio Paulinelli de Carvalho e Antônio Gomes de Vasconcelos.
Presente o Ministério Público do Trabalho, representado pela Dra. Lutiana Nacur Lorentz.
Belo Horizonte, 10 de agosto de 2022.
Secretária: Adriana Iunes Brito Vieira.
JULIANA VIGNOLI CORDEIRO
Desembargadora Relatora
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