Data da publicação:
Acordão - STF
Alexandre de Moraes - STF
COMPETÊNCIA - TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 3ª REGIÃO X CABIFY AGENCIA DE SERVICOS DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS LTDA. RCL 59795 PROCESSO ELETRÔNICO PÚBLICO NÚMERO ÚNICO: 0075674-89.2023.1.00.0000 RECLAMAÇÃO Origem: MG - MINAS GERAIS Relator: MIN. ALEXANDRE DE MORAES
RCL 59795
PROCESSO ELETRÔNICO PÚBLICO
NÚMERO ÚNICO: 0075674-89.2023.1.00.0000
RECLAMAÇÃO
Origem: MG - MINAS GERAIS
Relator: MIN. ALEXANDRE DE MORAES
RECLAMAÇÃO 59.795 MINAS GERAIS
RELATOR : MIN. ALEXANDRE DE MORAES
RECLTE.(S) :CABIFY AGENCIA DE SERVICOS DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS LTDA.
ADV.(A/S) :DANIEL DOMINGUES CHIODE
RECLDO.(A/S) :TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 3ª REGIÃO
ADV.(A/S) :SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS
BENEF.(A/S) :WENDELL JUNIO RICARDO
ADV.(A/S) :SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS
DECISÃO
Trata-se de Reclamação, com pedido de medida liminar, ajuizada por Cabify Agência de Serviços de Transporte de Passageiros Ltda., contra decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (Processo n. 0010140.79.2022.5.03.0110), que teria desrespeitado o que decidido por esta CORTE na ADC 48, na ADPF 324, no RE 958.252 (Tema 725-RG), na ADI 5835 MC/DF e no RE 688.223 (Tema 590-RG).
Na inicial, a parte reclamante apresenta as seguintes alegações de fato e de direito (eDoc. 1):
“O processo originário versa sobre o reconhecimento de vínculo de emprego de motorista de aplicativo, matéria conhecida como ‘Uberização’.
A presente reclamação vem calcada em desobediência, pela Corte Trabalhista, do precedente vinculante do julgamento da ADPF n. 324 e no RE n. 958.252 (Tema 725 de Repercussão Geral, no qual este Ex. STF fixou tese no sentido de admitir outras formas de contratações civis, diversas da relação de emprego estabelecida pelo art. 3º, da CLT.
Nada obstante não exista, na realidade, contrato direto entre a ora reclamante e o motorista parceiro, reconhecido como empregado pela Justiça do Trabalho, as premissas estabelecidas nas decisões que ensejaram a presente reclamação são as seguintes: 1. Haveria relação direta entre a plataforma, ora reclamante, e o motorista. 2. Esta relação seria de natureza empregatícia. 3. Considerou a plataforma reclamante como empresa de transporte, e não de intermediação de relacionamento.
Estabelecidas as premissas equivocadas, ainda assim, não seria hipótese de reconhecimento de vínculo de emprego, eis que a decisão do TRT3 ofende diretamente o entendimento fixado por este E. STF no precedente do julgamento da ADC n. 48, ADPF n. 324 e no RE n. 958.252 (Tema 725 de Repercussão Geral, na ADI 5835 MC/DF e no RE 688.223 (Tema 590-RG).
(…) Da forma como foi proferida, a decisão exarada pela Eg. 11ª Turma do E. TRT da 3ª Região consolidou entendimento contrário à jurisprudência deste Excelso STF, pois entendeu que haveria vínculo de emprego entre motorista parceiro e a plataforma, quando este E. STF permite diversos tipos de contratos distintos da relação de emprego constituída pela CLT. (…).
O enquadramento da relação estabelecida entre o motorista de aplicativo e a plataforma reclamante deve ser aquela prevista no ordenamento jurídico como maior semelhança, qual seja a situação prevista na Lei n. 11.442/2007, do transportador autônomo, sendo aquele proprietário de vínculo próprio e que tem relação de natureza comercial.
Por isso, o trabalho realizado através da plataforma tecnológica, e não, necessariamente, para ela, não deve ser enquadrado nos critérios definidos nos artigos 2º e 3º da CLT, pois o motorista pode decidir quando e se prestará seu serviço de transporte para os usuários do aplicativo Cabify, sem qualquer exigência mínima de trabalho, de número mínimo de viagens, de faturamento mínimo, sem qualquer fiscalização ou punição pela decisão do motorista.
Diante disso, verifica-se que a Cabify é uma plataforma tecnológica que faz a intermediação de serviços de transporte, facilitando a conexão entre os usuários cadastrados em sua base que buscam um serviço de transporte e os motoristas parceiros, autônomos, que contratam a plataforma para ter acesso aos clientes do aplicativo.
Cumpre ressaltar, também, que junto ao CNAE, a reclamante tem sua atividade econômica principal classificada como intermediação de serviços diversos. Portanto, são os motoristas os verdadeiros clientes da empresa, evidenciando a relação civil entre as partes.
Acrescente-se que a empresa reclamante jamais poderia ter contratado o motorista parceiro para o exercício de atividades de transporte de passageiros, na medida em que não presta serviços de transporte, não funciona como transportadora tampouco opera como agente para o transporte de passageiros.”
Requer, ao final, seja “afetada a reclamação trabalhista nº 0010140- 79.2022.5.03.0110, para fins de cassar a decisão atacada e para que se profira nova decisão em atenção ao que decidido por este Supremo Tribunal Federal na ADC nº 48, RE 958.252, na ADPF 324, na ADI 5835 MC/DF e no RE 688.223 (Tema 590 RG, de forma a reconhecer a relação comercial havida entre as partes” (eDoc. 1, fls. 20-21).
É o relatório. Decido.
A respeito do cabimento da Reclamação para o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, dispõem os arts. 102, I, l, e 103-A, caput e § 3º, ambos da Constituição Federal:
“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente:
[…] l) a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões;”
“Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
[…] § 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgandoa procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.”
Veja-se também o art. 988, I, II e III, do Código de Processo Civil:
“Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para:
I - preservar a competência do tribunal;
II - garantir a autoridade das decisões do tribunal;
III - garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade.”
Registre-se que esta ação foi aqui protocolada em 16/5/2023. Em consulta ao sítio eletrônico do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, não existe até a presente data certificação de trânsito em julgado na origem. Assim, não incide, ao caso sob exame, o inciso I do parágrafo 5º do artigo 988 do CPC, que assimilou pacífico entendimento desta CORTE, materializado na Súmula 734 (“não cabe reclamação quando já houver transitado em julgado o ato judicial que se alega tenha desrespeitado decisão do Supremo Tribunal Federal”).
Os paradigmas de controle são a ADC 48, a ADPF 324, o RE 958.252 (Tema 725-RG), a ADI 5835 MC e o RE 688.223 (Tema 590-RG).
Na ADC 48 (Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 15/4/2020), constou da ementa:
“Direito do Trabalho. Ação Declaratória da Constitucionalidade e Ação Direta de Inconstitucionalidade. Transporte rodoviário de cargas. Lei 11.442/2007, que previu a terceirização da atividade-fim. Vínculo meramente comercial. Não configuração de relação de emprego.
1. A Lei nº 11.442/2007 (i) regulamentou a contratação de transportadores autônomos de carga por proprietários de carga e por empresas transportadoras de carga; (ii) autorizou a terceirização da atividade-fim pelas empresas transportadoras; e (iii) afastou a configuração de vínculo de emprego nessa hipótese.
2. É legítima a terceirização das atividades-fim de uma empresa. Como já foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal, a Constituição não impõe uma única forma de estruturar a produção. Ao contrário, o princípio constitucional da livre iniciativa garante aos agentes econômicos liberdade para eleger suas estratégias empresariais dentro do marco vigente (CF/1988, art. 170). A proteção constitucional ao trabalho não impõe que toda e qualquer prestação remunerada de serviços configure relação de emprego (CF/1988, art. 7º). Precedente: ADPF 524, Rel. Min. Luís Roberto Barroso.
3. Não há inconstitucionalidade no prazo prescricional de 1 (um) ano, a contar da ciência do dano, para a propositura de ação de reparação de danos, prevista no art. 18 da Lei 11.442/2007, à luz do art. 7º, XXIX, CF, uma vez que não se trata de relação de trabalho, mas de relação comercial.
4. Procedência da ação declaratória da constitucionalidade e improcedência da ação direta de inconstitucionalidade. Tese: ‘1 A Lei 11.442/2007 é constitucional, uma vez que a Constituição não veda a terceirização, de atividade-meio ou fim. 2 O prazo prescricional estabelecido no art. 18 da Lei 11.442/2007 é válido porque não se trata de créditos resultantes de relação de trabalho, mas de relação comercial, não incidindo na hipótese o art. 7º, XXIX, CF. 3 Uma vez preenchidos os requisitos dispostos na Lei nº 11.442/2007, estará configurada a relação comercial de natureza civil e afastada a configuração de vínculo trabalhista.”
Naquela oportunidade, o Ministro Relator, em seu voto, pontuou que a Lei 11.442/2007 “disciplina, entre outras questões, a relação comercial, de natureza civil, existente entre os agentes do setor, permitindo a contratação de autônomos para a realização do Transporte Rodoviário de Cargas (TRC) sem a configuração de vínculo de emprego”. Portanto, as controvérsias sobre as relações jurídicas envolvendo tal diploma legal devem ser analisadas pela Justiça Comum, e não pela Justiça Trabalhista, diante da natureza jurídica comercial que as circundam, reitere-se.
No julgamento da ADPF 324 (Rel. Min. ROBERTO BARROSO), assentou-se a constitucionalidade da terceirização de atividade-fim ou meio, com a fixação da seguinte TESE: “1. É lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada. 2. Na terceirização, compete à contratante: i) verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada; e ii) responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias, na forma do art. 31 da Lei 8.212/1993”.
Por sua vez, no julgamento do Tema 725 da Repercussão Geral - RE 958.252 (Rel. Min. LUIZ FUX), reconheceu-se a possibilidade de organização da divisão do trabalho não só pela terceirização, mas de outras formas desenvolvidos por agentes econômicos. A tese, ampla, tem a seguinte redação: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”.
No julgamento do RE 688.223 (Rel. Min. DIAS TOFFOLI), em 6/12/2021, com publicação do acórdão em 3/3/2022, foi fixada a tese do Tema 590 da Repercussão Geral: “É constitucional a incidência do ISS no licenciamento ou na cessão de direito de uso de programas de computação desenvolvidos para clientes de forma personalizada, nos termos do subitem 1.05 da lista anexa à LC nº 116/03”.
A interpretação conjunta dos precedentes permite o reconhecimento da licitude de outras formas de relação de trabalho que não a relação de emprego regida pela CLT, como na própria terceirização ou em casos específicos, como a previsão da natureza civil da relação decorrente de contratos firmados nos termos da Lei 11.442/2007 (ADC 48 e ADI 3.961), ou a previsão da natureza civil para contratos de parceria entre salões de beleza e profissionais do setor, nos termos da Lei 13.352/2016 (ADI 5.625, Red. para o Acórdão Min. NUNES MARQUES). Destaco a tese da ADI 5.625:
“1) É constitucional a celebração de contrato civil de parceria entre salões de beleza e profissionais do setor, nos termos da Lei n. 13.352, de 27 de outubro de 2016; 2) É nulo o contrato civil de parceria referido, quando utilizado para dissimular relação de emprego de fato existente, a ser reconhecida sempre que se fizerem presentes seus elementos caracterizadores.”
Verifica-se, assim, a posição reiterada da CORTE no sentido da permissão constitucional de formas alternativas da relação de emprego, conforme também já se reconheceu em casos de afastamento da ilicitude de terceirizações por meio da contratação de pessoas jurídicas constituídas para prestação de serviços na atividade fim da entidade contratante: Rcl 39.351 AgR (Rel. Min. ROSA WEBER, Red. p/ Acórdão Min. ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 11/5/2020) e da Rcl 47.843 AgR (Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Red. p/ Acórdão Min. ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, DJe de 7/4/2022), esta última assim ementada:
“CONSTITUCIONAL, TRABALHISTA E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NA RECLAMAÇÃO. OFENSA AO QUE DECIDIDO POR ESTE TRIBUNAL NO JULGAMENTO DA ADPF 324 E DO TEMA 725 DA REPERCUSSÃO GERAL. RECURSO PROVIDO.
1. A controvérsia, nestes autos, é comum tanto ao decidido no julgamento da ADPF 324 (Rel. Min. ROBERTO BARROSO), quanto ao objeto de análise do Tema 725 (RE 958.252, Rel. Min. LUIZ FUX), em que esta CORTE fixou tese no sentido de que: ‘É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante’.
2. A Primeira Turma já decidiu, em caso análogo, ser lícita a terceirização por ‘pejotização’, não havendo falar em irregularidade na contratação de pessoa jurídica formada por profissionais liberais para prestar serviços terceirizados na atividade-fim da contratante (Rcl 39.351 AgR; Rel. Min. ROSA WEBER, Red. p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 11/5/2020).
3. Recurso de Agravo ao qual se dá provimento.”
Conforme destacou o Min. ROBERTO BARROSO no julgamento da Rcl 56.285/SP (j. 06/12/2022):
“12. Considero, portanto, que o contrato de emprego não é a única forma de se estabelecerem relações de trabalho. Um mesmo mercado pode comportar alguns profissionais que sejam contratados pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho e outros profissionais cuja atuação tenha um caráter de eventualidade ou maior autonomia. Desse modo, são lícitos, ainda que para a execução da atividade-fim da empresa, os contratos de terceirização de mão de obra, pareceria, sociedade e de prestação de serviços por pessoa jurídica (pejotização), desde que o contrato seja real, isto é, de que não haja relação de emprego com a empresa tomadora do serviço, com subordinação, horário para cumprir e outras obrigações típicas do contrato trabalhista, hipótese em que se estaria fraudando a contratação.”
Transferindo-se as conclusões da CORTE para o caso em análise, tem-se a mesma lógica para se autorizar a constituição de vínculos distintos da relação de emprego, legitimando-se a escolha.
A decisão reclamada, portanto, ao reconhecer vínculo de emprego entre motorista parceiro e a plataforma, desconsidera as conclusões do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL no julgamento da ADC 48, na ADPF 324, no RE 958.252 (Tema 725-RG), na ADI 5835 MC/DF e no RE 688.223 (Tema 590-RG), que permitem diversos tipos de contratos distintos da estrutura tradicional do contrato de emprego regido pela CLT.
A propósito, o TRT-3 deu parcial provimento ao recurso ordinário da parte ora beneficiária para reconhecer o vínculo de emprego havido entre as partes no período de 01.04.2017 a 09.07.2017, função motorista, sob as seguintes alegações (eDoc. 5, fls. 2-9):
“MÉRITO
MOTORISTA DA CABIFY - EMPRESA DE APLICATIVO - RELAÇÃO JURÍDICA
O Juízo de primeiro grau julgou improcedente o pedido do autor de reconhecimento do vínculo empregatício, sob os seguintes fundamentos: (…).
Contrapõe o autor conforme extensa argumentação, Id 800e38b (fl. 570).
Pois bem.
A aferição sobre a existência de vínculo de emprego na relação jurídica travada entre os litigantes é tema instigante (e complexo), que exige a averiguação de quatro elementos simultaneamente indispensáveis para a configuração da relação de emprego: a) pessoalidade; b) onerosidade; c) permanência ou não eventualidade; d) subordinação.
Tendo em vista a facilidade de utilização, comodidade e competitividade de preços, a utilização destas ferramentas digitais tem se tornado cada vez mais populares, em que o aplicativo possibilita e dinamiza a interação entre as pessoas interessadas no oferecimento de determinado serviço, quebrando diversos paradigmas não apenas nas relações de consumo, mas também no tocante às relações de trabalho.
A subordinação é a pedra de toque para diferenciar a relação empregatícia de outras formas de prestação de serviços. Todavia, o conceito clássico e tradicional da subordinação não mais se sustenta hodiernamente diante do desenvolvimento industrial e tecnológico e da evolução das práticas de negócios, como o caso em análise.
Conclui-se que, havendo interferência do tomador dos serviços no processo laboral, ou seja, na forma da concretização do trabalho prestado, verifica-se presente o elemento subordinação, restando configurado o vínculo de emprego.
Nesse ponto, esclareço que, a meu ver, a relação havida entre a Cabify Agência de Serviços de Transporte de Passageiros (e empresas de aplicativos afins) e os motoristas cadastrados realmente se caracteriza uma tentativa de burla à Lei Trabalhista.
E entendo que a subordinação se fez presente na espécie.
A autonomia do autor, conforme prova oral, é apenas aparente, visto que o motorista parceiro está sujeito ao cumprimento de regras, sob pena de ser suspenso ou descadastrado do aplicativo, conforme documentos de Id bf66aed (fl. 457) e Id 4b2c4b6 (fl. 459): exigência de carro com no máximo 5 anos de fabricação; ingerência direta na fixação do valor a ser pago pelo serviço prestado ao cliente, com fixação e alteração unilateral dos valores pela ré; estipulação de desempenho pessoal com possibilidade de avaliação pelos usuários.
O cliente não se dirige diretamente ao motorista, mas entra em contato com a ré, que, por sua vez, faz contato com os motoristas credenciados, oferecendo-lhes a prestação do serviço de transporte, pelo preço por ela própria estipulado.
Não vinga a tese de que o motorista poderia ficar ilimitadamente desconectado do aplicativo, ou que poderia recusar solicitações de modo ilimitado, porquanto a prática não condiz com a necessidade empresarial, inviabilizando a própria atividade.
Fica bastante evidente que a ré exerce seu poder regulamentar ao impor inúmeros regramentos que, se desrespeitados, podem ocasionar, inclusive, a perda do acesso ao aplicativo.
O controle destas regras e dos padrões de atendimento durante a prestação de serviços ocorre por meio das avaliações em forma de notas e das reclamações feitas pelos consumidores do serviço (cláusula quinta, Id 4b2c4b6, pág. 4, fl. 462).
Não se pode deixar de registrar também que a ré exerce o controle dos motoristas pela multidão de usuários, controle esse muito mais sutil, eficaz e repressor, realizado por todos e por ninguém.
Como já salientado, a ré concentrava em seu poder a política de pagamento do serviço prestado, seja em relação ao preço cobrado aos usuários por quilometragem rodada e tempo de viagem, seja quanto às formas de pagamento ou às promoções e descontos para usuários, não sendo dada ao motorista a possibilidade de gerência do negócio.
Em suma, o motorista trabalha controlado pela empresa/plataforma, pelo próprio aplicativo, instrumento essencial para a prestação dos serviços.
A ré se apresenta como uma empresa de tecnologia, mas, na verdade, atua objetivamente como uma empresa de transportes.
Veja-se que Cabify utiliza os motoristas previamente cadastrados para desenvolver a sua atividade econômica, que é a prestação de serviços de transporte de passageiros.
Isso porque (é relevante destacar) que os seus ganhos não decorrem do acesso ao aplicativo, mas dos serviços efetivamente prestados (o transporte de passageiros).
Não se pode negar que esta tecnologia trouxe benefícios para os consumidores, todavia, é inadmissível que ocorra em detrimento das condições dos trabalhadores.
Com efeito, mesmo sob a versão clássica, a subordinação se fez presente, visto que o motorista estava submisso a ordens sobre o modo de desenvolver a prestação de serviços.
Assim, havendo interferência do tomador dos serviços no processo laboral, ou seja, na forma da concretização do trabalho prestado, verifica-se presente o elemento subordinação, restando configurado o vínculo de emprego.
E sob o ponto de vista da subordinação objetiva e estrutural, a relação de emprego se fez presente, visto que o motorista presta serviço indispensável aos fins da atividade empresarial.
Ainda que se admita que a região é nebulosa, a chamada zona grise, a atração da relação jurídica realiza-se para dentro da ordem jurídica trabalhista (e não para o Código Civil que pouco dignifica o trabalho humano), como forma de alcançar vários trabalhadores que permanecem excluídos da proteção do Direito do Trabalho.
O princípio da livre iniciativa não autoriza a fraude nas relações de trabalho, mas deve respeitar o valor social do trabalho e a dignidade da pessoa humana do trabalhador (artigo 1º, III e IV, da CF). (…).
Presentes todos os elementos fático-jurídicos da relação de emprego, com redobrada vênia aos entendimentos em sentido contrário, reconheço o vínculo de emprego havido entre as partes no período de 01.04.2017 a 09.07.2017, função motorista, conforme ‘histórico de viagem’ de Id 0e59f60, fl. 422.”.
Assim, a conclusão adotada pela decisão reclamada acabou por contrariar os resultados produzidos nos paradigmas invocados, a sugerir, consequentemente, o restabelecimento da autoridade desta CORTE quanto ao ponto.
Realmente, a relação estabelecida entre o motorista de aplicativo e a plataforma reclamante mais se assemelha com a situação prevista na Lei 11.442/2007, do transportador autônomo, sendo aquele proprietário de vínculo próprio e que tem relação de natureza comercial.
Nesse sentido, cito trecho de ementa de julgado do STJ no Conflito de Competência 164.544/MG, Rel. Min. MOURA RIBEIRO:
“CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. INCIDENTE MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C.C. REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS AJUIZADA POR MOTORISTA DE APLICATIVO UBER. RELAÇÃO DE TRABALHO NÃO CARACTERIZADA. SHARING ECONOMY. NATUREZA CÍVEL. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ESTADUAL.
1. A competência ratione materiae, via de regra, é questão anterior a qualquer juízo sobre outras espécies de competência e, sendo determinada em função da natureza jurídica da pretensão, decorre diretamente do pedido e da causa de pedir deduzidos em juízo.
2. Os fundamentos de fato e de direito da causa não dizem respeito a eventual relação de emprego havida entre as partes, tampouco veiculam a pretensão de recebimento de verbas de natureza trabalhista. A pretensão decorre do contrato firmado com empresa detentora de aplicativo de celular, de cunho eminentemente civil.
3. As ferramentas tecnológicas disponíveis atualmente permitiram criar uma nova modalidade de interação econômica, fazendo surgir a economia compartilhada (sharing economy), em que a prestação de serviços por detentores de veículos particulares é intermediada por aplicativos geridos por empresas de tecnologia. Nesse processo, os motoristas, executores da atividade, atuam como empreendedores individuais, sem vínculo de emprego com a empresa proprietária da plataforma.
4. Compete a Justiça Comum Estadual julgar ação de obrigação de fazer c.c. reparação de danos materiais e morais ajuizada por motorista de aplicativo pretendendo a reativação de sua conta UBER para que possa voltar a usar o aplicativo e realizar seus serviços.
5. Conflito conhecido para declarar competente a Justiça Estadual.” (DJe 4/9/2019)
Diante do exposto, com base no art. 161, parágrafo único, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, JULGO PROCEDENTE o pedido de forma sejam cassados os atos proferidos pela Justiça do Trabalho (Processo 0010140.79.2022.5.03.0110) e DETERMINO a remessa dos autos à Justiça Comum.
Nos termos do art. 52, parágrafo único, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, dispenso a remessa dos autos à Procuradoria Geral da República.
Publique-se.
Brasília, 19 de maio de 2023.
Ministro ALEXANDRE DE MORAES
Relator
Documento assinado digitalmente
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