COVID-19 - CORONAVIRUS Contaminação pelo COVID-19

Data da publicação:

Acordão - TST

Tribunal Superior do Trabalho



Covid-19: sem prova de contaminação no trabalho, auxiliar de frigorífico não será indenizado



RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DA LEI Nº 13.467/2017 – DANO MORAIS – CONTAMINAÇÃO POR COVID-19 – AMBIENTE DE TRABALHO – FRIGORÍFICO –  RESPONSABILIDADE OBJETIVA – AUSÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE - TRANSCENDÊNCIA JURÍDICA

I - O reconhecimento do nexo de causalidade entre a COVID-19 e o trabalho desempenhado se dará de forma objetiva justamente em duas hipóteses: a) previsão expressa em lei; ou b) atividade que por natureza apresente exposição habitual a risco especial maior.

II - Para tratar da primeira hipótese de aplicação da responsabilidade objetiva (previsão legal), foi editada a Lei nº 14.128, de 26 de março de 2021, para amparar os trabalhadores da área de saúde que atuaram de forma direta no atendimento de pacientes acometidos por COVID-19.

III - Quanto à segunda hipótese (natureza da atividade apresentar exposição habitual a risco especial maior), é necessário identificar e comprovar que o tipo de serviço realizado expõe o trabalhador a um perigo acentuado de contaminação pelo novo coronavírus a ponto de gerar a responsabilidade objetiva do empregador.

IV - Procedendo a uma análise cuidadosa das contingências que envolvem a pandemia de COVID-19, iniciada em 2020, é fundamental constatar que a transmissão comunitária da doença funciona em parte como risco concorrente e até excludente da causalidade entre o desempenho do trabalho e a infecção do empregado. Isso ocorre, pois é difícil aferir de forma exata as circunstâncias da infecção, o que aproxima bastante os conceitos de pandemia e endemia para fins de reconhecimento de doença do trabalho.

V - Assim, aplicando a teoria objetiva, inclusive com suas exceções, é possível constatar que o ofício do Reclamante – auxiliar de produção em frigorífico – não se enquadra na hipótese de caso especificado em lei, tampouco se configura como atividade cuja natureza apresenta exposição habitual a risco especial maior à contaminação pelo novo coronavírus. Assim, resta ausente o nexo de causalidade, elemento essencial para a responsabilização da Reclamada. Súmula nº 126 do TST.

HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS DE SUCUMBÊNCIA – BENEFICIÁRIO DA JUSTIÇA GRATUITA – SUSPENSÃO DE EXIGIBILIDADE – ART. 791-A, § 4º, PARTE FINAL, DO CPC – ADI Nº 5766 – TRANSCENDÊNCIA JURÍDICA

1. Trata-se de questão nova acerca da aplicação de precedente vinculante do E. STF, publicado em 3/5/2022, sobre legislação trabalhista. Está presente, portanto, a transcendência jurídica, nos termos do art. 896-A, § 1º, IV, da CLT.

2. Ao julgar a ADI nº 5766, o E. Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da expressão "desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa", constante do parágrafo 4º do artigo 791-A da CLT.

3. A declaração parcial de inconstitucionalidade decorreu do entendimento de que, para se exigir o pagamento de honorários advocatícios de sucumbência da parte que recebeu o benefício da justiça gratuita, deve-se provar que houve modificação de sua situação econômica, demonstrando-se que adquiriu capacidade de arcar com as despesas do processo. A E. Corte considerou que o mero fato de alguém ser vencedor em pleito judicial não é prova suficiente de que passou a ter condições de arcar com as despesas respectivas.

4. Preservou-se, assim, a parte final do dispositivo, remanescendo a possibilidade de condenação do beneficiário de justiça gratuita ao pagamento de honorários de sucumbência, com suspensão da exigibilidade do crédito, que poderá ser executado se, no período de dois anos, provar-se o afastamento da hipossuficiência econômica.

5. Ao determinar a suspensão de exigibilidade dos honorários advocatícios de sucumbência devidos pelo beneficiário de justiça gratuita, admitindo a execução do crédito, se provado o afastamento da condição de miserabilidade jurídica no período de dois anos, o acórdão regional amolda-se à decisão vinculante do E. STF na ADI nº 5766.

Recurso de Revista não conhecido. (TST-RR-491-34.2020.5.12.0038,  Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, DEJT 03/06/2022)

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso de Revista n° TST-RR-491-34.2020.5.12.0038, em que é Recorrente EMERSON CANDIDO JAQUES e é Recorrido BUGIO AGROPECUARIA LTDA..

O Eg. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região deu  provimento ao Recurso Ordinário da Reclamada para afastar o nexo de causalidade entre o trabalho e a infecção do reclamante pelo novo coronavírus e negou provimento ao Recurso Ordinário do Reclamante (fls. 1266/1277 e 1315/1318).

O Reclamante interpôs Recurso de Revista (fls. 1334/1360), que foi admitido pelo despacho de fls. 1361/1365 e 1375/1377.

Sem contrarrazões.

Dispensada a remessa dos autos ao Ministério Público do Trabalho, nos termos regimentais.

É o relatório.

V O T O

REQUISITOS EXTRÍNSECOS DE ADMISSIBILIDADE

Atendidos os requisitos extrínsecos de admissibilidade, passo ao exame dos intrínsecos.

I - DANO MORAIS – CONTAMINAÇÃO POR COVID-19 – AMBIENTE DE TRABALHO – FRIGORÍFICO – RESPONSABILIDADE OBJETIVA – AUSÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE - TRANSCENDÊNCIA JURÍDICA

Conhecimento

Eis os fundamentos do acórdão regional no pertinente:

  1. - Doença ocupacional. Infecção pelo novo coronavírus (COVID-19). Danos morais

O Juízo de primeira instância julgou que a infecção do reclamante pelo novo coronavírus (COVID-19) caracteriza "acidente do trabalho por equiparação, na forma do art. 20, HI, da Lei 8.213/91" (fl. 1167) e, desta feita, condenou a reclamada ao pagamento de indenização por danos morais, no valor de R$ 3.974,04 (fl. 1170).

Segundo fundamentou a Magistrada sentenciante, a atividade da reclamada:

(...) enseja risco de contágio de forma acentuada, o que possibilita a responsabilização do empregador na forma do artigo 927 do Código Civil, conforme decisão do STF em repercussão geral, acima transcrita. Logo, o ônus da prova acerca da inexistência de nexo de causalidade entre o contágio da reclamante e o labor recai sobre a reclamada, do qual não se desincumbiu, a teor do artigo 818 da CLT. [fl. 1164].

A reclamada recorre da decisão.

Alega que a sentença está firmada em presunções.

Refere que, no caso concreto, "foram respeitados grupos de riscos e tomadas precauções partidas pela reclamada e HOMOLOGADAS pelo MPT" e defende que "o local de trabalho é seguro em relação ao COVID-19" (fl. 1236).

Aduz que, ao contrário do entendimento "a quo", a sua atividade não é considerada atividade de risco. Argumenta que, no presente caso, não houve a produção de pericial a respeito do tema. Pugna pelo afastamento do nexo de causalidade entre o trabalho e a infecção do reclamante, com a consequente exclusão de sua condenação.

Em caráter subsidiário, pede seja reduzido o valor indenizatório ao equivalente a um salário do reclamante.

Os pedidos relativos às indenizações decorrentes da alegada doença ocupacional são analisados à luz do disposto nos art. 5º, incisos Ve X, art. 7º, inciso XXVIII, ambos da Constituição Federal e art. 186 do Código Civil.

À luz do art. 927, parágrafo único, do Código Civil, a responsabilização objetiva, sob a perspectiva da teoria do risco, encontra aplicação apenas nos casos especificados em lei ou quando a atividade normalmente desempenhada implique, em face da sua natureza, risco acentuado ao trabalhador.

Nessa linha, decidiu o Supremo Tribunal Federal, ao julgar ao Tema 932 de repercussão geral, que a responsabilidade objetiva tem aplicação "nos casos especificados em lei ou quando a atividade normalmente desenvolvida, por sua natureza, apresentar exposição habitual a risco especial, com potencialidade lesiva, e implicar ao trabalhador ônus maior do que aos demais membros da coletividade" (RE 828040, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 12/03/2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-161 DIVULG 25-06-2020 PUBLIC 26-06-2020).

Entretanto, não é o caso da atividade do reclamante, auxiliar de produção no setor de abate de empresa frigorífica.

Ressalto que, na forma da lei e em consonância com a jurisprudência vinculante do Supremo Tribunal Federal, para fins de responsabilização objetiva, o que enseja "a exposição habitual a risco especial" é a atividade "normalmente desenvolvida" na empresa, "por sua natureza", hipótese alheia ao quadro excepcional derivado da pandemia do novo coronavírus (COVID-19).

Portanto, no presente caso, o deferimento da indenização por danos extrapatrimoniais submete-se à demonstração da ocorrência de três elementos essenciais, sem os quais não é possível reconhecer a responsabilidade cívil, quais sejam: o dano, o nexo de causalidade e a culpa do agente.

O ônus da prova desses elementos incumbe ao reclamante, por fatos constitutivos do seu direito (CLT, art. 818).

A constatação do dano e do nexo causal (ou concausal) entre o dano e o trabalho requer, em regra, a produção de prova pericial médica.

No caso, é incontroversa a infecção do reclamante pelo novo coronavírus (COVID-19), com teste positivo realizado em 08/05/2020 (fl. 37).

Em se tratando de doença endêmica (ou, no caso, pandêmica), a Lei afasta a possibilidade de presunção favorável ao estabelecimento do nexo de causalidade com o trabalho.

Nos expressos termos do art. 20, $ 1º, alínea "d", da Lei n. 8.213/91, não é considerada como doença do trabalho a "doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho".

Sobre a pandemia do novo coronavírus (COVID-19), destaco artigo do Ministro Cláudio Brandão, intitulado "A COVID-19 e o adoecimento ocupacional", no qual o Ministro assinala que "não há que se falar na COVID-19 como doença profissional, pois não há atividade em que esteja presente de maneira específica, salvo no campo da mera especulação ou elocubrações meramente teóricas, como no exemplo de pesquisadores dedicados exclusivamente a essa enfermidade, e, por isso, viesse a se tornar inerente para eles, o que, repita-se, permanece no plano meramente teórico" (inO Direito do Trabalho na crise da COVID-19 /Coordenadores Alexandre Agra Belmonte, Luciano Martinez, Ney Maranhão - Salvador: Editora JusPodivm, 2020, p. 279 e ss).

Por outro lado, o Ministro afirma que, "Apesar da natureza pandêmica, acima, portanto, da condição de mera endemia, a COVID-19 pode ser qualificado como enfermidade de natureza ocupacional, mais precisamente doença do trabalho, para os casos dos trabalhadores que exercem as suas atividades em ambientes nos quais estejam presentes as possibilidades de contágio, como estabelecimentos de saúde, ambulâncias, necrotérios, hospitais, entre outros".

Ainda no artigo citado, o Ministro trata da possibilidade de a COVID-19 ser equiparada à natureza ocupacional nas situações de pessoas que, de modo acidental, venham a se contagiar, bem como da possibilidade de reconhecimento da responsabilidade objetiva quando se tratar de profissionais que atuam diretamente no combate à pandemia, na "linha de frente, como popularmente se diz.

O art. 29 da MP 927/2020 admitia a possibilidade de a COVID-19 vir a ser caracterizada como doença do trabalho, mas apenas no caso de comprovação do nexo causal, o que demandaria prova a cargo do empregado e a análise das condições em que o labor é executado.

Entretanto, a eficácia desse artigo foi suspensa por decisão do Supremo Tribunal Federal em diversas ações diretas de inconstitucionalidade, a exemplo da ADI 6346, prevalecendo o voto do Ministro Alexandre de Moraes que entendeu que o dispositivo "ofende inúmeros trabalhadores de atividades essenciais que continuam expostos ao risco" e acabaria invertendo o ônus da prova mesmo em situações de atividades com alto risco de contágio.

Além disso, a referida MP 927/2020 teve sua vigência encerrada e não foi convertida em lei.

Posteriormente, com a edição da Lei 14.128/2021, de 26/03/2021, o Legislador estabeleceu tratamento diferenciado aos profissionais e aos trabalhadores de saúde que, durante o período de emergência de saúde pública de importância nacional decorrente da disseminação do novo coronavírus, tenham trabalhado no atendimento direto a pacientes acometidos pela Covid-19, ou realizado visitas domiciliares em determinado período de tempo, no caso de agentes comunitários de saúde ou de combate a endemias. Nos termos do art. 2º, 81º, da Lei 14.128/2021, "Presume-se a Covid-19 como causa da incapacidade permanente para o trabalho ou óbito"; o que, evidentemente, tem aplicação exclusivamente aos trabalhadores acima mencionadas, para os quais a lei se destina.

Para os demais trabalhadores infectados pelo novo coronavírus durante a pandemia por ele provocada, por analogia, prevalece a regra geral do art. 20, $ 1º, alínea "d", da Lei n. 8.213/91, qual seja: em se tratando de doença endêmica (no caso, pandêmica), não é considerada como doença do trabalho, "salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho".

Desta feita, considerando que a atividade do reclamante (auxiliar de produção em empresa frigorífica) não está contemplada na Lei 14.128/2021 (profissionais da saúde), não possível estabelecer uma presunção de causalidade entre o seu trabalho e a contaminação pelo novo coronavírus, permanecendo a necessidade de comprovação, como exige o art. 20, 8 1º, alínea "d", da Lei n. 8.213/91.

No caso, não houve a produção de prova pericial capaz de confirmar essa peculiar situação causalidade, consubstanciada na exposição ou contato direito com a causa da doença determinado pela natureza do trabalho.

Além disso, as provas documentais e testemunhais produzidas não são robustas o suficiente para comprovar o alto risco de exposição do trabalhador à contaminação pelo novo coronavítrus em razão do trabalho.

Está demonstrado que a reclamada celebrou com o Ministério Público do Trabalho Termo de Ajustamento de Conduta - TAC nº 20.2020, em 04/06/2020, tendo por objeto a adoção de medidas de controle para evitar a exposição indevida ao risco de contágio dos trabalhadores pelo novo coronavírus (fls. 561-580), acompanhado de relatório de execução do referido termo (fls. 582-608), bem como acordos coletivos firmados com o sindicato da categoria para a adoção de ações emergenciais (fls. 610-624).

a A primeira testemunha relatou que, à época da contaminação do reclamante, as medidas preventivas estavam em fase de implantação na empresa e que, embora todas as medidas não tivessem sido adotadas, a empresa já realizava mediação de temperatura e disponibilizava álcool em gel (Pje Mídias, a partir de 8min26).

A segunda testemunha confirmou a adoção de medidas preventivas contra o novo coronavírus. A testemunha asseverou, por exemplo, que os empregados que estivessem com temperatura elevada (febre) eram barrados na porta da empresa (Pje Mídias, a partir de 24min30).

Ressalto que ao reclamante pertence o ônus da prova do fato constitutivo do seu direito, "ex vi" do inciso I do art. 818 da CLT, e que desse ônus não se desincumbiu.

Porque não comprovado a contento o nexo causal ou concausal com o trabalho, não há como imputar à reclamada responsabilidade civil pelo dano (sob qualquer perspectiva, objetiva ou subjetiva).

Em decorrência, são improcedentes todos os pedidos relacionados à alegada doença ocupacional.

Dou provimento ao recurso para afastar o nexo de causalidade entre o labor e a infecção do reclamante pelo novo coronavírus e, com isso, isentar a reclamada de condenação na presente ação.

(fls. 1267/1271 – grifos acrescidos)

Em Recurso de Revista, o Reclamante afirma que "postulou a condenação da empresa no pagamento de indenização em razão de sua contaminação por COVID-19 no ambiente laboral" (fls. 1336). Explica que sua atividade é de risco, uma vez que a dinâmica de trabalho no frigorífico não sofreu ajustes para adequar a produção às medidas de contenção ao novo coronavírus. Sustenta que a responsabilidade deve ser objetiva em razão do risco da atividade no contexto da pandemia, envolvendo "aglomeração de pessoas e contato próximo, ampliando sobremaneira os riscos de contaminação em massa" (fls. 1343). Sustenta que "foi contaminado por Sars-Cov em maio do ano de 2020 (exame de detecção do vírus em 08.05.2020), e que estava exposto ao ambiente insalubre da empresa e a todos os riscos trazidos pela dinâmica laboral, a decisão que deixa de responsabilizar a empresa pelos danos causados viola frontalmente a legislação pátria, em especial, como dito, o art. 927, §ú, do CC, bem como o art. 7º, caput e XXVII, da CF/88" (fls. 1344). Argumenta que "o trabalho em frigoríficos acarreta elevado risco de exposição à contaminação por COVID-19" (fls. 1345). Invoca os artigos 186, 927, parágrafo único, do Código Civil, 223-B, 223-E, da CLT, 21, III, da Lei nº 8.213/91, 5º, V, X, 7º, caput, XXVII, da Constituição da República. Menciona a decisão vinculante do E. STF em sede do RE 828040. Colaciona arestos.

A questão é nova no âmbito desta Corte, razão pela qual a matéria possui transcendência jurídica.

Com o advento da pandemia de COVID-19, a transmissão comunitária do novo coronavírus afetou drasticamente todas as relações de trabalho, exigindo medidas urgentes para conter a disseminação da doença, resguardar a saúde de trabalhadores e empresários, manter ao máximo os vínculos de emprego e o equilíbrio econômico-financeiro da iniciativa privada.

Para tentar equilibrar a difícil equação, foi editada a Medida Provisória nº 927, em 22 de março de 2020, com o objetivo de adequar as normas trabalhistas, considerando o momento de crise instaurado pela pandemia de COVID-19.

Ao tratar nexo causal entre o trabalho e a contaminação pelo novo coronavírus, o artigo 29 da Medida Provisória nº 927/2020 estabeleceu que:

Art. 29.  Os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal.       (Vide ADI nº 6342)       (Vide ADI nº 6344)       (Vide ADI nº 6346)       (Vide ADI nº 6352)          (Vide ADI nº 6354)       (Vide ADI nº 6375)       (Vide ADI nº 6380)

A constitucionalidade do dispositivo foi prontamente questionada e o E. Supremo Tribunal Federal suspendeu sua eficácia, ao fundamento de que em "casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida, por sua natureza, apresentar exposição habitual a risco especial, com potencialidade lesiva e implicar ao trabalhador ônus maior do que aos demais membros da coletividade".

O Redator na ADI nº 6342, Ministro Alexandre de Moraes, consignou expressamente a tese fixada no julgamento do RE 828.040 como fundamento para declarar a inconstitucionalidade do artigo 29 da MP nº 927/2020. Eis o trecho de seu voto:

"A norma em questão exclui, como regra, a contaminação pelo coronavírus da lista de doenças ocupacionais, transferindo o ônus da comprovação ao empregado, isto é, cabe ao trabalhador demonstrar que contraiu a doença durante o exercício laboral, denodando o caráter subjetivo da responsabilidade patronal.

No entanto, essa previsão vai de encontro ao recente julgamento do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL em relação à responsabilidade objetiva do empregador em alguns casos. No julgamento do RE 828.040 (ata de julgamento publicada no DJe em 19/3/2020), sob o regime de repercussão geral, de minha relatoria, essa CORTE fixou a seguinte tese jurídica:

"O artigo 927, parágrafo único, do Código Civil é compatível com o artigo 7º, XXVIII, da Constituição Federal, sendo constitucional a responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida, por sua natureza, apresentar exposição habitual a risco especial, com potencialidade lesiva e implicar ao trabalhador ônus maior do que aos demais membros da coletividade".

Assim, o texto do art. 29 da MP 927/2020, ao praticamente excluir a contaminação por coronavírus como doença ocupacional, tendo em vista que transfere aos trabalhadores o ônus de comprovação, destoa, em uma primeira análise, de preceitos constitucionais que asseguram direitos contra acidentes de trabalho (art. 7º, XXVIII, da CF). A norma, portanto, não se mostra razoável, de forma que entendo presentes os elementos necessários para a concessão de medida liminar."

(fls. 55/56 – grifos acrescidos)

Assim, o dispositivo do acórdão da ADI 6342 precisa ser lido em conjunto com a fundamentação do Redator, em exercício de interpretação sistemática. O reconhecimento do nexo de causalidade entre a COVID-19 e o trabalho desempenhado se dará de forma objetiva justamente em duas hipóteses: a) previsão expressa em lei; ou b) atividade que por natureza apresente exposição habitual a risco especial maior.

Como explica Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, não se perquire a culpa na responsabilidade objetiva. Nesse sentido, ensinam:

"Por fim, na teoria objetiva, a discussão de culpa é completamente desprezada, sendo despiciendo se aferir se houve ou não um erro de conduta ou omissão de diligência, cuidando-se de responsabilidade independente da existência de culpa"[1]

Assim, não se questiona a culpa do empregador pela contaminação do trabalhador, mas apenas verifica-se o nexo causal entre a atividade desempenhada e o adoecimento por COVID-19.  A responsabilização objetiva é menos exigente em requisitos para atribuir um dever ao garantidor da situação. É como esclarecem os professores Cristiano de Farias e Nelson Rosenvald:

"(...) a teoria objetiva dispensa a aferição do ilícito culposo: o agente responde independentemente da existência de culpa, pois tanto faz se o ato é lícito ou ilícito, sendo bastante que um dispositivo legal ou o risco de uma atividade indiquem um fato danoso cuja causa se impute adequadamente a um comportamento do agente. Em síntese, o foco da presunção absoluta é a punição do ofensor remetida a extremos, enquanto o cerne da teoria objetiva é a reparação dos danos" [2](grifos acrescidos)

Para tratar da primeira hipótese de aplicação da responsabilidade objetiva (previsão legal), foi editada a Lei nº 14.128, de 26 de março de 2021, para amparar os trabalhadores da área de saúde que atuaram de forma direta no atendimento de pacientes acometidos por COVID-19, incluindo neste conceito "aqueles que, mesmo não exercendo atividades-fim nas áreas de saúde, auxiliam ou prestam serviço de apoio presencialmente nos estabelecimentos de saúde para a consecução daquelas atividades, no desempenho de atribuições em serviços administrativos, de copa, de lavanderia, de limpeza, de segurança e de condução de ambulâncias, entre outros, além dos trabalhadores dos necrotérios e dos coveiros" (art. 1º, parágrafo único, alínea "d", da Lei nº 14.128/2021).

A Lei nº 14.128/2021, no seu artigo 2º, § 1º, estabeleceu presunção legal de ser a COVID-19 a causa de incapacidade permanente para o trabalho ou óbito no caso de diagnóstico ou laudo médico compatível com o quadro clínico da doença no período de atuação profissional. Assim, o referido diploma aplicou a teoria do risco para esses profissionais e a responsabilidade objetiva do Estado para garantir indenização pelos danos advindos no atendimento de pessoas acometidas pelo novo coronavírus ou outra doença de caráter endêmico (parte final do caput do artigo 1º, da Lei nº 14.128/2021).

Quanto à segunda hipótese (atividade que por natureza apresente exposição habitual a risco especial maior), é necessário identificar e comprovar que o tipo de serviço realizado expõe o trabalhador a um perigo acentuado de contaminação pelo novo coronavírus a ponto de gerar a responsabilidade objetiva do empregador.

Mesmo com a aplicação da teoria objetiva, é possível que existam causas concorrentes que venham a eximir ou minimizar a responsabilidade do empregador. Desse modo, ensinam os civilistas Cristiano Chaves de Faria e Nelson Rosenvald:

"Aplicando-se a teoria objetiva ao acidente de trabalho nos casos em que o empregado estava submetido ao risco inerente a certa atividade, restará ao empregador a possibilidade de se eximir da obrigação de indenizar sob o argumento de uma das excludentes da causalidade, ou mesmo de mitigar a obrigação de indenizar, com fundamento no risco concorrente."[3] (grifos acrescidos)

Nesse aspecto, Cristiano de Farias e Nelson Rosenvald explicam que caberá ao julgador analisar as contingências inerentes a certos ofícios que incrementem um risco especial. Veja-se:

"De qualquer forma, caberá ao juiz, sempre diante das particularidades do caso concreto, estudar e decidir, primeiramente, se se trata de atividade indutora de risco especial. Uma vez estabelecido no despacho saneador que a hipótese é de responsabilidade objetiva, ficará o reú ciente de que a sua inércia poderá repercutir no resultado da lide. Portanto, não será qualquer acidente de trabalho que ocasionará a aplicação da cláusula geral do risco da atividade. Ela será excepcional e incidirá apenas quando as peculiaridades da demanda incitem a imputação objetiva.1065"[4] (grifos acrescidos)

Procedendo a uma análise cuidadosa das contingências que envolvem a pandemia de COVID-19, iniciada em 2020, é fundamental constatar que a transmissão comunitária da doença funciona em parte como risco concorrente e até excludente da causalidade entre o desempenho do trabalho e a infecção do empregado. Isso ocorre, pois é difícil aferir de forma exata as circunstâncias da infecção, o que aproxima bastante os conceitos de pandemia e endemia para fins de reconhecimento de doença do trabalho.

Conforme explica a diretora do Laboratório de Virologia do Instituto Butantan, a pandemia é declarada pela Organização Mundial de Saúde quando há um aumento significativo de uma doença em várias regiões do mundo simultaneamente, já uma endemia caracteriza-se por ser uma doença típica de uma localidade, ainda que não apresente um aumento expressivo de pessoas adoecidas.[5]

Considerando a dificuldade de se aferir o local da contaminação por uma doença disseminada em uma região, a Lei nº 8.213/91 estabeleceu em seu artigo 20, § 1º, "d", que a doença endêmica não é considerada doença do trabalho, exceto se restar demonstrado que a natureza do ofício expunha o trabalhador a maior risco de contágio ou contato direto com o agente adoecedor. In verbis:

Art. 20. Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas:

I - doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social;

II - doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I.

§ 1º Não são consideradas como doença do trabalho:

a) a doença degenerativa;

b) a inerente a grupo etário;

c) a que não produza incapacidade laborativa;

d) a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho.

A inteligência dos dispositivos reside na dificuldade técnica em se aferir onde o trabalhador se infectou e, assim, determinar a responsabilidade de forma justa.

No caso específico da COVID-19, por ter como agente infeccioso o novo coronavírus, que está disseminado em todo o país (e no mundo), não há como determinar o local e o momento exatos em que cada indivíduo entra em contato com o vírus e adquire a doença, exceto em casos bastante específicos que envolvem o cuidado e tratamento de pessoas que testaram positivo ou faleceram por complicações da doença.

Assim, aplicando a teoria objetiva, inclusive com suas exceções, é possível constatar que o ofício do Reclamante – auxiliar de produção em frigorífico – não se enquadra na hipótese de caso especificado em lei, tampouco se configura como atividade cuja natureza apresenta exposição habitual a risco especial maior à contaminação pelo novo coronavírus.

A ausência de previsão legal é patente, uma vez que a própria Lei nº 14.128/2021 não elenca trabalhadores de frigorífico como profissionais e trabalhadores de saúde e áreas afins.

Já na segunda hipótese, não restou demonstrado o nexo causal entre a infecção por COVID e o trabalho desempenhado, de forma expor o Reclamante a risco maior de infecção. O Eg. TRT registrou que "não houve a produção de prova pericial capaz de confirmar essa peculiar situação causalidade, consubstanciada na exposição ou contato direito com a causa da doença determinado pela natureza do trabalho" (fls. 1271). Consignou, ainda, que "as provas documentais e testemunhais produzidas não são robustas o suficiente para comprovar o alto risco de exposição do trabalhador à contaminação pelo novo coronavírus em razão do trabalho" (fls.1271 ).

Não há como proceder a enquadramento jurídico dos fatos de forma diversa, com base na doutrina e legislação vigente.

Assim, entender de maneira diversa demandaria o revolvimento de fatos e provas, o que encontra óbice da Súmula nº 126 do TST.

Pelo exposto, não conheço.

II - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS DE SUCUMBÊNCIA – BENEFICIÁRIO DA JUSTIÇA GRATUITA

a) Conhecimento

O Tribunal Regional condenou o Reclamante, beneficiário da justiça gratuita, ao pagamento de honorários de sucumbência, nos seguintes termos:

2.4 - Honorários advocatícios

O reclamante recorre contra a sua condenação ao pagamento de honorários advocatícios de sucumbência e, em caráter subsidiário, requer a suspenção de sua exigibilidade.

Na forma do art. 791-A, caput, da CLT, ao advogado serão devidos honorários de sucumbência, fixados entre o mínimo de 5% e o máximo de 15%, sobre o valor que resultar da liquidação da sentença, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa.

O caput do art. 791-A da CLT, incluído pela Lei 13.467/17, guarda compatibilidade com o art. 5º, incisos XXXV e LXXIV, da CF, mormente diante da regra insculpida no 84º do artigo celetista.

Como a gratuidade de justiça é devida aos que "comprovem insuficiência de recursos" (art. 5º, LXXIV, da CF) e a exigibilidade do crédito está suspensa enquanto perdurar esta circunstância, está inteiramente observada a norma constitucional.

Por outro lado, se a parte obteve "créditos capazes de suportar a despesa" (art. 791-A, 84º, da CLT), cessa para ela a situação de insuficiência de recursos para custear os honorários aos quais foi condenada.

Como há expressa e específica previsão na CLT sobre a condenação em honorários, inexiste espaço para a aplicação de normas de outros diplomas legais, em especial do Código Civil ou do Código de Processo Civil (art. 85 e ss.).

Desta feita, ainda que beneficiário da gratuidade de justiça, o reclamante responde pelos honorários advocatícios sucumbenciais.

Nego provimento, no particular.

Acerca do pedido subsidiário, verifico que a suspensão da exigibilidade do crédito, em razão da total improcedência da ação, já está contemplada em sentença (fl. 1179).

Nada a prover.

3 - INVERSÃO DA SUCUMBÊNCIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS

Com a reversão da sucumbência nesta instância, não restam pedidos autorais julgados procedentes, ou parcialmente procedentes, a atrair a incidência de honorários sucumbenciais ao encargo da reclamada.

Desse modo, está isenta a reclamada do pagamento de honorários advocatícios aos advogados do reclamante.

Lado outro, reporto-me aos fundamentos já explicitados no voto, para manter a condenação do reclamante no pagamento de honorários advocatícios, na razão da sucumbência na totalidade dos pedidos, em favor dos patronos da reclamada.

Cumpre apenas, de ofício, à luz do $ 1º do art. 322 do CPC e em observância aos termos do art. 791-A da CLT, adequar o valor da condenação, que passa a ser de 5% sobre o valor atualizado da causa.

O arbitramento no percentual de 5% se justifica à luz dos parâmetros fixados no $2º art. 791-A da CLT, considerando o trabalho realizado pelos advogados e o tempo de prestação dos serviços (ação ajuizada em agosto de 2020), a ausência de incidentes processuais ou expedição de cartas precatórias, sopesando, por outro lado, o valor da causa, que garantirá aos advogados a justa retribuição.

(fls. 1274/1276 – grifos acrescidos)

Em Recurso de Revista, o Reclamante alega que, por ser beneficiário da justiça gratuita, não deve arcar com o pagamento de honorários advocatícios, sob pena de flagrante inconstitucionalidade. Sustenta que a concessão da gratuidade judicial sem a isenção ao pagamento dos honorários advocatícios não cumpre o papel de oferecer pleno acesso à justiça. Afirma que "a regra de exceção contida nos arts. 790-B, § 4º, e 791-A, § 4º, da Lei 13.467/2017, não se coaduna com o artigo 5º, LXXVI da Constituição Federal que expressamente prevê que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, nem com os princípios jurídicos aplicáveis ao direito do trabalho e ao processo do trabalho" (fls. 1349). Aponta violação aos artigos 5º, XXXV, LXXIV, LXXVI, 7º, caput, da Constituição da República, 8º, § 1º, 15, 98, 790, § 3º, § 4º, 790-B, § 4º, 791-A, §4º, da CLT, 98, 99, § 3º, do CPC. Colaciona arestos.

Trata-se de questão nova acerca da aplicação de precedente vinculante do E. STF, publicado em 3/5/2022, sobre legislação trabalhista. Está presente, portanto, a transcendência jurídica, nos termos do art. 896-A, § 1º, IV, da CLT.

O art. 791-A, § 4º, da CLT, incluído pela Lei nº 13.467/2017, regulamentou a condenação do beneficiário da justiça gratuita ao pagamento de honorários advocatícios, nestes termos:

Art. 791-A. Ao advogado, ainda que atue em causa própria, serão devidos honorários de sucumbência, fixados entre o mínimo de 5% (cinco por cento) e o máximo de 15% (quinze por cento) sobre o valor que resultar da liquidação da sentença, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa.

(...)

§ 4.º - Vencido o beneficiário da justiça gratuita, desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa, as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos dois anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário.

Ao julgar a ADI nº 5.766, o E. Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade parcial do dispositivo, nos termos do voto do Ministro Alexandre de Moraes, que concluiu:

(...) CONHEÇO da Ação Direta e, no mérito, julgo PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido para (...) declarar a inconstitucionalidade da expressão "desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa", constante do § 4º do art. 791-A (...) da CLT, com a redação dada pela Lei 13.467/2017. (destaques acrescidos)

A declaração parcial de inconstitucionalidade decorreu do entendimento de que, para se exigir o pagamento de honorários advocatícios de sucumbência da parte que recebeu o benefício da justiça gratuita, deve-se provar que houve modificação de sua situação econômica, demonstrando-se que adquiriu capacidade de arcar com as despesas do processo. A E. Corte considerou que o mero fato de alguém ser vencedor em pleito judicial não é prova suficiente de que passou a ter condições de arcar com as despesas respectivas.

Preservou-se, assim, a parte final do dispositivo, remanescendo a possibilidade de condenação do beneficiário de justiça gratuita ao pagamento de honorários de sucumbência, com suspensão da exigibilidade do crédito, que poderá ser executado se, no período de dois anos, provar-se o afastamento da hipossuficiência econômica:

Art. 791-A. (...)

(...)

§ 4.º - Vencido o beneficiário da justiça gratuita, (...) as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos dois anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário.

Eis os fundamentos registrados pelo Exmo. Ministro Alexandre de Moraes:

As garantias fundamentais da inafastabilidade da jurisdição e do amplo, facilitado e célere acesso ao Poder Judiciário foram, sem dúvida, na Constituição de 1988 - art. 5º, LXXIV -, densificadas expressamente na previsão de que "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos". Assim, a assistência jurídica aos mais necessitados é contemplada em nosso ordenamento jurídico pela instituição de órgãos públicos voltados à prestação direta desse serviço, como as defensorias públicas, sendo que os sindicatos também exercem esse papel perante a Justiça Trabalhista. Além disso, confere-se ao jurisdicionado hipossuficiente o tratamento diferenciado (e mais benéfico) no tocante aos ônus e encargos financeiros decorrentes da eventualidade de buscar o socorro judicial para a tutela de direitos.

Obviamente, disso se extrai - nenhum dos votos proferidos proferidos até o momento disse o contrário - a obrigatoriedade de tratamento diferenciado para os jurisdicionados que se encontram em situação de vulnerabilidade econômica e social, o que é, eu diria, a regra mais frequente no contexto das lides trabalhistas.

Essa assistência judiciária ampla aos mais necessitados vem contemplada em nosso ordenamento jurídico não só pela instituição de órgãos públicos como a Defensoria Pública - voltada à prestação de serviços públicos -, mas também com tratamento diferenciado, com benefício - justo benefício - no tocante a ônus e encargos financeiros que decorrem do reconhecimento da justiça gratuita.

Isso existe não só na Justiça Trabalhista, como sabemos, mas também no âmbito da jurisdição comum. No âmbito da jurisdição comum, a Lei Federal 1.060/1950 disciplinou o tema da gratuidade judiciária, tratamento recentemente alterado pelo novo Código de Processo Civil. Reconhece-se ao hipossuficiente, condição afirmada pelo próprio beneficiário e tomada como presumivelmente verdadeira, a dispensa do pagamento de taxas judiciárias e honorários advocatícios e periciais.

Frise-se que essa dispensa não é absoluta. A Lei contempla a possibilidade de que o beneficiário da gratuidade de justiça, caso venha a reunir recursos financeiros suficientes no lustro posterior ao fim do processo, caso sucumbente, seja chamado a arcar com os encargos inicialmente dispensados (art. 11, § 2º). Não se trata, portanto, de isenção absoluta ou definitiva dos encargos do processo, mas mera dispensa da antecipação do pagamento (RE 249.003-ED, Rel. Min EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, DJe de 10/5/2016), nos casos em que a antecipação de pagamento possa acabar frustando a possibilidade do hipossuficiente de recorrer à Justiça.

A partir desse desenho de conformação legislativa que o Congresso Nacional fez da previsão constitucional (art. 5º, LXXIV, da CF) da garantia da gratuidade aos que comprovarem insuficiência de recursos, a concessão de tratamento diferenciado somente se sustenta, por óbvio, quando permanece a situação de vulnerabilidade, hipótese essa que torna justa a concessão da assistência de quem dela necessite. Essa é a dinâmica, como disse, inclusive, da leitura do art. 98 do CPC.

O tratamento da gratuidade judiciária do processo civil também admite a responsabilização do beneficiário sucumbente pelo pagamento das despesas processuais, bem como admite, no caso concreto, a modulação dos benefícios concedidos à parte vulnerável, a fim de proporcionar tratamento benéfico à real necessidade do jurisdicionado.

Ou seja, deve ficar comprovado (e, aqui, acho importante, porque esse é o corte que farei também para a questão trabalhista) que aquela situação de vulnerabilidade não mais existe. Não algo matemático: era vulnerável, ganhou dois, tem de pagar um, então, fica com um, sem saber se o fato de ter recebido dois torna-o ou não vulnerável.

O que o ordenamento jurídico estabelece é que, uma vez comprovada a cessação da situação de vulnerabilidade, seria possível, mesmo na Justiça comum, nos termos art. 98, a modulação, a possibilidade de redução dos benefícios antecipadamente conhecidos.

Isso já existia no âmbito do processo judicial trabalhista. Mesmo antes da edição das normas agora impugnadas, a regulamentação no âmbito do processo judicial trabalhista convergia exatamente para essa disciplina da gratuidade, porque permitia, possibilitava, a representação do reclamante por seu sindicato. A Lei 5.584 previa o pagamento de honorários de sucumbência; definiu um patamar objetivo para a aferição da insuficiência de recursos, no caso, salário igual ou inferior ao dobro do mínimo legal referido no art. 14, § 1º, também da citada Lei 5.584; e estabelecia a isenção do pagamento de honorários periciais até a edição dessa nova lei, a da chamada Reforma Trabalhista, que teve o propósito (estamos julgando aqui diversas impugnações, diversos pontos diferentes dessa Reforma Trabalhista de 2017 - se obteve ou não, isso deverá ser analisado com o tempo), modernizar o tratamento dessa relação processual trabalhista e pretendeu alterar esse panorama.

Parece-me importante verificar aqui se essa alteração – uma vez verificada que toda a estrutura da gratuidade, garantida constitucionalmente, exige a hipossuficiência, mas também, e mais importante, a cessação dessa gratuidade exige comprovação do término da hipossuficiência – feita pela Reforma Trabalhista foi razoável, foi proporcional, foi adequada. Ou seja, se, apesar das alterações, mantém-se o pleno acesso ao Poder Judiciário; se, apesar das alterações, mantém-se a proteção ao hipossuficiente que tem direito constitucional à justiça gratuita; ou se, por outro lado, aquele que entra na ação hipossuficiente, ganha, e continua hipossuficiente, mesmo assim perde o que ganha de forma automática, sem se demonstrar a hipossuficiência. Como o próprio texto legal dispõe, somente se o beneficiário da justiça gratuita não obtiver em juízo créditos capazes de suportar a despesa - ainda que em outro processo - a União responderá pelo encargo.

É aquela questão que disse anteriormente, de conta matemática. Então, é hipossuficiente, os honorários periciais custaram cinco, ele ganhou dois, tem que pagar dois, fica devendo três. Mas, será que, ganhando dois, ele não se tornou ou não continuou sendo hipossuficiente? Essa é a questão. Vai demandar somente para pagar honorários periciais se o móvel da lei, se a razão da lei, foi impedir que pleiteie seu direito, parece-me um obstáculo contrário à previsão constitucional. As inovações promovidas pela lei, em sua maioria, trataram exatamente disso, de alterações desses importantíssimos pontos: majorar o marco objetivo para a aferição da insuficiência de recursos para o patamar de 40% do teto do RGPS - art. 790, § 3º, da Reforma Trabalhista -; permitir o parcelamento de honorários periciais e a responsabilização do beneficiário de gratuidade que vem, posteriormente, a gozar de insuficiência de recursos para arcar com os encargos da sucumbência. Deve ser analisado se esses pontos foram tratados com razoabilidade: o pagamento de honorários periciais, mesmo do beneficiário da gratuidade da Justiça; a responsabilização da parte beneficiária pelos encargos da sucumbência na hipótese em que favorecida por condenação em outro processo (aqui uma compensação processual, uma detração, se fosse no campo penal; "você ganhou esse, cuidado para não entrar com aquele, porque, se perder aquele, você perde o que você ganhou nesse" - se isso for entendido como um obstáculo a pleitear seus direitos, parece-me que fere a Constituição); e pagamento de custas em caso de ausência injustificada à audiência de julgamento.

Presidente, esse tema, como já tratado por todos os Ministros que me antecederam, realmente, é da maior sensibilidade; e a Corte já demonstrou isso em diversos julgamentos anteriores sobre a Reforma Trabalhista (ADI 5.794, Redator para o acórdão Vossa Excelência, Presidente; ADI 5.938, da qual fui Relator), em que vários pontos da reforma foram analisados. Trata-se, obviamente, não só naqueles como nesse caso específico, de legislação sensível para a fruição dos direitos sociais; uma legislação instrumental que pode ou não obstaculizar verdadeiramente - é o que todos desejamos - a efetiva fruição dos direitos sociais. Em que pese essa fruição não tornar a matéria imune à conformação do legislador - o legislador pode estabelecer, como sempre estabeleceu, requisitos, inclusive antes dessa legislação impugnada -, essa legislação deve ser razoável.

Nesse ponto, Presidente, já adianto que não entendo razoáveis os arts 790-B, § 4º, e 791-A, § 4º. Não entendo razoável a responsabilização nua e crua, sem análise se a hipossuficiência do beneficiário da justiça gratuita pelo pagamento de honorários periciais deixou ou não de existir, inclusive com créditos obtidos em outro processo. Da mesma forma, não entendo razoável e proporcional o pagamento de honorários de sucumbência pelo beneficiário da justiça gratuita, sem demonstrar-se que ele deixou de ser hipossuficiente, ou seja, essa compensação processual sem se verificar se a hipossuficiência permanece ou não.

A deferência de tratamento permitida pela Constituição se baseia exatamente nessa admissão de hipossuficiência. Simplesmente entender que, por ser vencedor em um outro processo ou nesse, pode pagar a perícia, e, só por ser vencedor no processo, já o torna suficiente, autossuficiente, seria uma presunção absoluta da lei que, no meu entendimento, fere a razoabilidade e o art. 5º, XXIV.

Os dois dispositivos, tanto o caput quanto os parágrafos, estão estabelecendo obstáculos à efetiva aplicação do art. 5º, LXXIV - repito:

"Art.5º .........................................................................

LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;"

Uma eventual vitória judicial em outro ambiente processual não descaracteriza, por si só, a condição de hipossuficiência. Não há nenhuma razão para entender que o proveito econômico apurado no outro processo seja suficiente para alterar a condição econômica do jurisdicionado, em vista da infinidade de situações a se verificar em cada caso. Nessa hipótese em que se pretende utilizar o proveito de uma ação para arcar com a sucumbência de outro processo – uma "compensação" -, o resultado prático é mitigar a sua vitória e manter a sua condição de hipossuficiência.

Ora, onde está a prova de que cessou a hipossuficiência para afastar os benefícios da justiça gratuita? A forma como a lei estabeleceu a incidência de encargos quanto a honorários de perícia e da sucumbência - como bem destacado pelo Ministro EDSON FACHIN em seu voto divergente, e também no parecer da Procuradoria-Geral da República - feriu a razoabilidade e a proporcionalidade e estipulam restrições inconstitucionais, inclusive pela sua forma absoluta de aplicação da garantia da gratuidade judiciária aos que comprovam insuficiência de recurso.

Então, Presidente, entendo inconstitucionais os arts. 790-B, caput e o § 4º, 791-A, § 4º. Nesse aspecto, julgo procedente a ação por serem inconstitucionais.

(...)

Em vista do exposto, CONHEÇO da Ação Direta e, no mérito, julgo PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido para declarar a inconstitucionalidade da expressão "ainda que beneficiária da justiça gratuita", constante do caput do art. 790-B; para declarar a inconstitucionalidade do § 4º do mesmo art. 790-B; declarar a inconstitucionalidade da expressão "desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa", constante do § 4º do art. 791-A; para declarar constitucional o art. 844, § 2º, todos da CLT, com a redação dada pela Lei 13.467/2017. (destaques acrescidos)

Ao determinar a suspensão de exigibilidade dos honorários advocatícios de sucumbência devidos pelo beneficiário de justiça gratuita, admitindo a execução do crédito, se provado o afastamento da condição de miserabilidade jurídica no período de dois anos, o acórdão regional amolda-se à decisão vinculante do E. STF na ADI nº 5766.

Ante o exposto, não conheço do Recurso de Revista.

ISTO POSTO

ACORDAM os Ministros da Quarta Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade, não conhecer do Recurso de Revista integralmente, porém, com reconhecimento de transcendência jurídica das matérias nele veiculadas.

Brasília, 31 de maio de 2022.

Firmado por assinatura digital (MP 2.200-2/2001)

Maria Cristina Irigoyen Peduzzi

Ministra Relatora

 


[1] CRISTIANO, C. D. F. Novo Tratado de Responsabilidade Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 559.

[2] CRISTIANO, C. D. F. Novo Tratado de Responsabilidade Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 561.

[3] CRISTIANO, C. D. F. Novo Tratado de Responsabilidade Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 1781.

[4] CRISTIANO, C. D. F. Novo Tratado de Responsabilidade Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 1784.

[5] BRASIL, Instituto BUTANTAN. Entenda o que é uma pandemia e as diferenças entre surto, epidemia e endemia. Disponível em: <https://butantan.gov.br/covid/butantan-tira-duvida/tira-duvida-noticias/entenda-o-que-e-uma-pandemia-e-as-diferencas-entre-surto-epidemia-e-endemia > Acesso em 23/03/2022.

 

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