Data da publicação:
Acordão - TST
Amaury Rodrigues Pinto Junior - TST
TST considera impossível jornada de 20 horas diárias de chefe de cozinha
RECURSO ORDINÁRIO EM AÇÃO RESCISÓRIA. TRÂNSITO EM JULGADO DA DECISÃO RESCINDENDA OCORRIDO NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015.
I – ERRO DE FATO. PRODUÇÃO DE PROVAS. NÃO CABIMENTO.
1. O erro de fato a justificar o corte rescisório é aquele que se verifica pelo singelo exame dos autos, o que desde logo evidencia a incoerência da pretensão probatória: se há necessidade de produção de provas na ação rescisória, não se pode falar em "erro de fato", pois o resultado do julgamento não teria decorrido de "erro de percepção" do julgador, mas por deficiência probatória a cargo da parte interessada. Precedentes da SDI-2.
II - NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. EFEITO DEVOLUTIVO EM PROFUNDIDADE DO RECURSO DE NATUREZA ORDINÁRIA. NÃO OCORRÊNCIA.
Ainda que o acórdão regional não tenha se manifestado a respeito de determinada prova ou tese defendida por uma das partes, não há que se falar em nulidade por negativa de prestação jurisdicional, pois o efeito devolutivo próprio dos recursos de natureza ordinária (art. 1.013, § 1º, do CPC e da Súmula nº 393, I, do TST), possibilita que eventuais omissões sejam sanadas diretamente pela instância revisional. Precedentes da SDI-2.
III - ERRO DE FATO. REVELIA. PRESUNÇÃO QUE DÁ ORIGEM AO RECONHECIMENTO DE FATO MATERIALMENTE IMPOSSÍVEL. JORNADA DE TRABALHO IMPRATICÁVEL. CARACTERIZAÇÃO.
1. Tendo como único fundamento a confissão ficta decorrente da revelia, a sentença rescindenda presumiu verdadeira uma jornada diária que teria início às 6 horas da manhã e findaria às 2 horas da manhã do dia seguinte, com dois intervalos de 30 minutos, durante aproximadamente três anos.
2. Perceba-se que o horário laborativo afirmado pelo demandante da ação trabalhista não era resultado do cumprimento de plantão ou sobreaviso, mas de efetiva prestação de serviço que exigia esforço físico e estado de alerta (auxiliar de cozinha e, depois, chefe de cozinha). Exatamente por isso, a jornada de trabalho reconhecida na ação matriz (vinte horas diárias por um período de três anos) exigiria que o trabalhador dormisse menos de quatro horas por dia, situação fática que desafia necessidade fisiológica básica do ser humano.
3. A presunção fática que resulta da revelia não autoriza o reconhecimento de fato impossível e, por mais que a coisa julgada mereça a proteção do ordenamento jurídico, não se pode conceber como irrescindível uma sentença judicial que está fundamentada em fato impossível, pois a técnica não deve sobrepor à ética, do que resultaria descrédito ao Poder Judiciário e ao valor intrínseco de suas decisões.
4. O fato essencial (possibilidade física de cumprimento de tão extensa jornada laboral) foi admitido como resultado da aplicação da técnica de presunção e não em decorrência de valoração das provas produzidas, o que afasta a vedação da parte final do art. 966, § 1º, do CPC e da Orientação Jurisprudencial nº 136 da SDI-II do c. TST.
5. Precedentes.
Recurso ordinário conhecido e parcialmente provido.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso Ordinário n° TST-RO-1001080-44.2016.5.02.0000, em que é Recorrente CASA FASANO EVENTOS LTDA. e Recorrido KASSIO CLEITON PAES DE CASTRO.
A autora CASA FASANO EVENTOS LTDA. ajuizou ação rescisória com fundamento no artigo 966, III, V, VI, VIII e IX, do CPC/2015, pretendendo desconstituir acórdão proferido nos autos da ação trabalhista n. 00000064-68-2010-5-02-0037.
O Colegiado Regional julgou improcedente a pretensão rescisória, conforme acórdão de p. 1247-1253, integrado pela decisão de p. 1312-1315.
A autora interpôs recurso ordinário às p. 1324-1422, admitido às p. 1428-1429.
O réu apresentou contrarrazões (p. 1435-1465).
É o relatório.
Satisfeitos os pressupostos extrínsecos de admissibilidade recursal quanto à tempestividade, à representação processual, e recolhido o preparo, conheço do recurso ordinário.
2. MÉRITO
2.1 – NULIDADE. CERCEAMENTO DE DEFESA. INDEFERIMENTO DE PROVA PERICIAL.
O Colegiado Regional indeferiu a produção de prova pericial, durante a instrução processual, pelos seguintes fundamentos (p. 1186):
DESPACHO
1. Tendo em vista a natureza da matéria discutida na presente ação rescisória, a pretendida produção de prova técnica acerca da jornada INDEFIRO de trabalho, cujo deferimento pela r. decisão rescindenda decorreu da revelia e pena de confissão aplicada à reclamada, não se inserindo, portanto, na hipótese prevista no art. 156 do NCPC.
2. Encerrada a instrução processual, formulem, autor e réu, querendo, suas razões finais no prazo de 10 (dez) dias, sucessivamente.
3. Após, voltem conclusos.
Alega a recorrente que: a) requereu a produção de prova pericial para demonstrar que a jornada indicada pelo empregado no processo matriz, reconhecida por verdadeira em sentença, é humanamente impossível; b) o indeferimento da prova acarretou cerceamento de defesa.
Não lhe assiste razão.
É clássica a lição no sentido de que a demanda rescisória fundada em erro de fato não admite a mínima dilação probatória. Neste sentido, entre outros, Fernando da Fonseca Gajardoni, Luiz Dellore, André Vasconcelos Roque e Zulmar Duarte de Oliveira Jr:
...admite-se AR se a decisão estiver fundada em "erro de fato", desde que esse erro seja "verificável do exame dos autos", ou seja, independa de nova produção de prova[1]
O erro de fato a justificar o corte rescisório é aquele que se verifica pelo singelo exame dos autos, o que desde logo evidencia a incoerência da pretensão probatória requerida pelo autor: se há necessidade de produção de provas na ação rescisória, não se pode falar em "erro de fato", pois o resultado do julgamento não teria decorrido de "erro de percepção" do julgador, mas por deficiência probatória a cargo da parte interessada.
Nesse sentido, já decidiu esta SDI-2 do TST:
(...) CERCEAMENTO DE DEFESA NA AÇÃO RESCISÓRIA - NÃO CONFIGURAÇÃO. O Tribunal Regional indeferiu o pedido do autor de produção de prova pericial nos autos da ação rescisória. A presente ação rescisória foi ajuizada com pedido de desconstituição da decisão rescindenda sob o fundamento da existência de violação literal de lei e erro de fato (artigo 485, V e IX, do CPC de 1973). Entretanto, para se rescindir uma decisão com fundamento em violação literal de lei e erro de fato, não é possível a produção de provas nos autos da ação rescisória. Recurso ordinário conhecido e desprovido. (...)" (RO-1002722-52.2016.5.02.0000, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Renato de Lacerda Paiva, DEJT 13/11/2020). (g.n.).
Nego provimento ao recurso.
2.2 – NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL
Alega a recorrente que: a) o acórdão recorrido, a despeito da oposição de embargos de declaração, recusou-se a apreciar aspectos essenciais da controvérsia jurídica dos autos; b) o acórdão recorrido restou completamente omisso, obscuro e contraditório no tocante a prova científica do erro de fato da coisa julgada, não tecendo uma linha sobre a referida prova científica; c) houve negativa de prestação jurisdicional.
Não lhe assiste razão.
Ainda que o acórdão regional não tenha se manifestado a respeito de determinada prova ou tese defendida por uma das partes, não há que se falar em nulidade por negativa de prestação jurisdicional, pois o efeito devolutivo próprio dos recursos de natureza ordinária (art. 1.013, § 1º, do CPC e da Súmula nº 393, I, do TST), possibilita que eventuais omissões sejam sanadas diretamente pela instância revisional.
Nesse sentido, destaco precedentes desta Subseção II Especializada em Dissídios Individuais:
RECURSO ORDINÁRIO EM AÇÃO RESCISÓRIA. PRELIMINAR. NULIDADE. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO CONFIGURAÇÃO. Caso em que a Corte Regional expôs a motivação conducente à conclusão de improcedência do pedido de corte rescisório, centrada na controvérsia da questão jurídica debatida nos autos da ação matriz, ao tempo da prolação da decisão rescindenda, conforme diretriz da Súmula 83 do TST. Não se confunde o insucesso da pretensão deduzida com a ausência de motivação judicial. Ainda que assim não fosse, nos recursos de natureza ordinária, por força do efeito devolutivo em profundidade, todas as questões suscitadas e discutidas são devolvidas ao exame da jurisdição revisora, ainda que não tenham sido decididas por inteiro, impondo-se ao órgão ad quem a cognição da matéria impugnada pela parte recorrente, conforme art. 1013, §§ 1º e 2º, do CPC de 2015. Desse modo, devolvida a matéria ao exame do TST por meio do presente recurso ordinário, não há falar em prejuízo processual (art. 282, § 1º, do CPC de 2015) e, consequentemente, em nulidade do julgamento. Preliminar rejeitada. (...) (RO-5026-46.2016.5.09.0000, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Douglas Alencar Rodrigues, DEJT 01/07/2021).
(...) PRELIMINAR DE NULIDADE DO V. ACÓRDÃO RECORRIDO POR NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. O Autor, nas razões de recurso ordinário, argui nulidade do v. acórdão recorrido por negativa de prestação jurisdicional. Afirma que o eg. TRT não se pronunciou sobre a declaração equivocada contida no v. acórdão rescindendo, de não juntada do processo administrativo 19890/2013, se limitando a analisar a relevância ou não desse processo administrativo na contagem do prazo prescricional. No entanto, ante a devolutividade ampla do recurso ordinário em ação rescisória, consagrada pelo art. 1.013, § 1º, do CPC/15, desnecessária a análise da nulidade arguida. Precedentes. Preliminar rejeitada. (...) (ROT-10546-30.2019.5.18.0000, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 25/06/2021).
(...) NULIDADE DA DECISÃO RECORRIDA POR NEGATIVA DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. Considerado o efeito devolutivo do recurso ordinário e a aplicação subsidiária ao processo do trabalho da norma do art. 515, § 1º, do CPC/1973, não se viabiliza a alegação de suposta negativa de prestação jurisdicional originada no acórdão recorrido. Rejeita-se. (...) (RO-11046-53.2013.5.02.0000, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Relatora Ministra Maria Helena Mallmann, DEJT 25/06/2021).
NEGO PROVIMENTO.
2.3 – ERRO DE FATO. JORNADA DE TRABALHO HUMANAMENTE IMPOSSÍVEL.
O Colegiado Regional julgou a pretensão improcedente, contra o que se insurge a autora, argumentando que: a) narrou o réu, autor no processo matriz, que por 03 anos e meio (42 meses), cumpriu jornada de trabalho humanamente impossível; b) foi revel no processo matriz, razão pela qual o juízo considerou verdadeira a jornada alegada na inicial; c) a sentença de primeiro grau do processo originário, embasada na tese da revelia e da pena de confissão, tomou por verdadeiras as alegações da exordial, reconhecendo fato inexistente e humanamente impossível; d) os efeitos da revelia não se sobrepõem ao fato impossível, ou seja, não geram presunção de veracidade quando os fatos alegados pelo empregado forem inverossímeis ou impossíveis; e) o acórdão rescindendo importou em diversas violações à lei.
Dou provimento ao recurso.
A sentença rescindenda, em razão da confissão decorrente da revelia, reconheceu a seguinte jornada de trabalho (p. 252-253):
A reclamada foi regularmente citada, mas não compareceu em audiência para apresentar defesa e depor, sendo cominada a confissão e revelia quanto aos fatos.
A aplicação da confissão gera a presunção de veracidade das alegações contidas na inicial.
Tal presunção não foi elidida por prova produzida em sentido contrário.
(...)
Por fim, observando mais uma vez as limitações impostas pela inicial e pelo depoimento do reclamante, fixo sua jornada de trabalho da seguinte forma:
a) das 6h às 2h da manhã seguinte;
b) dois intervalos de 30 minutos cada, um destinado para almoço e o outro para o jantar;
c) folga em um dia por semana, que arbitro às quartas-feiras e aos domingos;
d) labor em um domingo a cada seis meses, na mesma jornada acima acolhida.
No caso, tendo como único fundamento a confissão ficta decorrente da revelia, a sentença rescindenda presumiu verdadeira uma jornada diária que teria início às 6 horas da manhã e findaria às 2 horas da manhã do dia seguinte, com dois intervalos de 30 minutos, durante mais de três anos.
Perceba-se que o horário laborativo afirmado pelo demandante da ação trabalhista não era resultado do cumprimento de plantão ou sobreaviso, mas de efetiva prestação de serviço que exigia esforço físico e estado de alerta (auxiliar de cozinha e, depois, chefe de cozinha). Exatamente por isso, a jornada de trabalho reconhecida na ação matriz (vinte horas diárias por um período de três anos e seis meses) exigiria que o trabalhador dormisse menos de quatro horas por dia, situação fática que desafia necessidade fisiológica básica do ser humano.
E a presunção fática que resulta da revelia não autoriza o reconhecimento de fato impossível e, por mais que a coisa julgada mereça a proteção do ordenamento jurídico, não se pode conceber como irrescindível uma sentença judicial que está fundamentada em fato impossível, pois a técnica não deve sobrepor à ética, do que resultaria descrédito ao Poder Judiciário e ao valor intrínseco de suas decisões.
De outro norte, o fato essencial (possibilidade física de cumprimento de tão extensa jornada laboral) foi admitido como resultado da aplicação da técnica de presunção e não em decorrência de valoração das provas produzidas, o que afasta a vedação da parte final do art. 966, § 1º, do CPC e da Orientação Jurisprudencial nº 136 da SDI-II do c. TST.
Em situação similar este Tribunal Superior do Trabalho já afastou a presunção ficta para o reconhecimento de fatos materialmente impossíveis.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.467/2017. TRANSCENDÊNCIA. JORNADA DE TRABALHO. REVELIA. CONFISSÃO FICTA. PRESUNÇÃO DE VERACIDADE. INVEROSSIMILHANÇA DA JORNADA INDICADA NA PETIÇÃO INICIAL. ARBITRAMENTO DA JORNADA COM BASE NO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. NÃO TRANSCENDÊNCIA. NÃO PROVIMENTO. A presunção de veracidade da jornada alegada na petição inicial, decorrente da inteligência do artigo 844 da CLT, é relativa, podendo ser elidida por prova em contrário. Além disso, o entendimento cristalizado nesse dispositivo é uma ficção jurídica, que não autoriza o acolhimento automático, e como verdade absoluta, de toda e qualquer jornada informada pelo empregado, sob pena de se reconhecer jornada humanamente impossível de ser executada. Em tais circunstâncias, cabe ao juiz aplicar as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece, conforme lhe permite o artigo 375 do CPC. No presente caso, o Tribunal Regional, a despeito da revelia e da consequente pena de confissão , aplicadas na forma do artigo 844 da CLT, deixou de presumir verdadeiros os expedientes aventados na exordial, mantendo a decisão que fixou jornada diversa, por entender não ser verossímil reconhecer o labor, por todo período contratual, em desrespeito ao descanso semanal remunerado. Prevaleceu, assim, a jornada mais condizente com a realidade. A decisão regional, portanto, não viola os artigos 844 da CLT e 319 do CPC, tampouco suscita divergência jurisprudencial, já que encontra respaldo em precedentes desta Corte Superior, o que atrai o óbice da Súmula nº 333. A incidência do óbice preconizado na Súmula no 333, a meu juízo, é suficiente para afastar a transcendência da causa, uma vez que o não processamento do recurso de revista inviabilizará a análise das questões controvertidas e, por conseguinte, não serão produzidos os reflexos gerais, nos termos previstos no § 1º do artigo 896-A da CLT. Agravo de instrumento a que se nega provimento" (AIRR-27-23.2017.5.12.0003, 4ª Turma, Relator Ministro Guilherme Augusto Caputo Bastos, DEJT 13/09/2019). (grifei)
"RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO PELA RECLAMANTE. (...) 2. HORAS EXTRAS. JORNADA INVEROSSÍMEL. CONTRARIEDADE À SUMULA N° 338 DO TST NÃO CONFIGURADA. N ão se olvida que, nos termos elencados pelo item I da Súmula n° 338 desta Corte Superior, é ônus do empregador que conta com mais de dez empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, § 2º, da CLT, sendo que a não apresentação injustificada dos controles de frequência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrário. Entretanto, a presunção de veracidade decorrente da não apresentação dos controles de jornada não tem aplicabilidade quando a jornada de trabalho mencionada é absolutamente inverossímil, como na hipótese dos autos , em que a reclamante sustentou laborar sucessivas jornadas de vinte e quatro horas diárias e de doze horas, sem folgas ou intervalos. Com efeito, não há como convalidar jornadas de trabalho implausíveis , como aquelas declinadas pela reclamante na petição inicial, pois reconhecê-las como verdadeiras equivaleria a admitir-se que o ser humano pudesse laborar sem executar atividades fisiológicas essenciais à sua sobrevivência, indo de encontro aos princípios da primazia da realidade e da persuasão racional consubstanciados na livre apreciação da prova. Ademais, nos termos do inciso IV do art. 345 do CPC, mesmo na revelia, não há falar em presunção de veracidade das alegações formuladas pelo autor quando forem inverossímeis. Recurso de revista não conhecido" (RR-331-29.2016.5.05.0463, 8ª Turma, Relatora Ministra Dora Maria da Costa, DEJT 02/03/2018).
"AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. HORAS EXTRAS. REGISTROS DE PONTO. AUSÊNCIA. PRESUNÇÃO DE VERACIDADE. JORNADA IRREAL DECLINADA NA PETIÇÃO INICIAL 1. A jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho sedimentou o entendimento de que a não apresentação injustificada dos controles de frequência gera presunção relativa de veracidade da jornada declinada na petição inicial (Súmula nº 338, I). 2. Semelhante presunção, todavia, concerne a fatos verossímeis à luz da experiência subministrada ao juiz da observação do que ordinariamente acontece. Não obstante a noção clássica de Justiça seja simbolicamente representada por uma deusa de olhos vendados, a Justiça do Trabalho não pode deixar de manter os olhos bem abertos para não chancelar presunções absurdas ou absolutamente irreais em face das limitações humanas. 3. A presunção em apreço, assim, não alcança a pretensa jornada de labor absolutamente sobrehumana, surreal e absurda, sistematicamente de 18 horas diárias, das 7h à 1h da manhã do dia seguinte, de segunda a sábado, e de 8h às 20h, aos domingos, sem intervalo para refeição e descanso, ao longo de dezesseis meses. 4. Em casos que tais , a solução não encontra amparo na diretriz da Súmula nº 338 do Tribunal Superior do Trabalho, fundamentada tão somente na omissão do empregador. 5. Incumbe ao empregado o ônus de produzir prova da acenada e inverossímil jornada, sob pena de improcedência do pedido . 6. Agravo de instrumento do Reclamante de que se conhece e a que se nega provimento" (AIRR-159200-34.2006.5.02.0040, 4ª Turma, Relator Ministro Joao Oreste Dalazen, DEJT 22/03/2016).
Destaco, ainda, precedente dessa SDI-2 que admitiu o corte rescisório por erro de fato em razão do reconhecimento de jornada de trabalho materialmente impossível. Na ocasião, o relator do acórdão, Ministro Gelson de Azevedo, registrou:
Erro de fato tipifica-se não apenas por idéia falsa, resultante da consideração de fato inexistente ou de desconsideração de fato existente no processo, mas também de conclusão a respeito de fato cuja existência se afigura teratológica por ser fisicamente impossível. Ou seja, erro de fato é a falta de coincidência entre a idéia e o estado verdadeiro da coisa. (ED-ROAR-336854-11.1997.5.04.5555, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Gelson de Azevedo, DEJT 15/12/2000)
Destarte, dou provimento ao recurso para julgar procedente a ação rescisória e desconstituir a sentença proferida no processo matriz no capítulo pertinente às horas extras e consectários.
2.3.1. JUÍZO RESCISÓRIO
Rescindida a sentença no capítulo referente às horas extras e consectários, em juízo rescisório, procede-se novo julgamento.
HORAS EXTRAS E REFLEXOS
Em que pese a revelia, a presunção de veracidade dos fatos firmados pelo reclamante devem ser harmonizados com critérios de verossimilhança e razoabilidade, mormente quando se depara com flagrante dissonância entre os fatos narrados na petição inicial e aqueles declarados pelo trabalhador no momento de seu depoimento.
Na peça inicial consignou-se (p. 119-120):
O Autor iniciava sua jornada as 06:00 da manhã, se apresentando no prédio da Rua Tabapuã.
Tinha início, neste horário, toda preparação do evento noturno, como seleção dos ingredientes a serem usados nos jantares e início do preparo dos pratos.
Era encarregado, também, de receber e conferir todas as mercadorias entregues por fornecedores e que iriam ser usadas nos eventos da alta sociedade.
Tal tarefa se prolongava até aproximadamente as 17:00, quando o Autor e outros empregados se deslocavam para a Chácara Fasano, na Rua Atílio lnnocenti, 52, onde, habitualmente, eram realizadas as recepções.
Lá chegando, preparavam toda a recepção, dando acabamento final nos pratos, preparando-os para serem servidos.
Via de regra, tais eventos tinham inicio entre 20:00 e 21:00 horas, se prolongando até as 24:00, durante a semana ou até as 03:00 aos finais de semana.
Ao terminar a recepção, o trabalho do Autor continuava, pois ele era encarregado de recolher todo o material utilizado na festa, limpando-o, embalando-o e colocando de volta no veículo DUCATO para ser levado a sede da Rua Tabapuã, a fim de que no dia seguinte tudo estivesse em ordem para o próximo evento.
Tal labuta, verdadeiro regime de escravidão, encerrava-se por volta das 03:00 do dia seguinte, durante a semana e as 06:00 durante os finais de semana.
Após um descanso de três horas aproximadamente, no dormitório dos empregados na Rua Renato, nova jornada fatigante tinha início.
O Autor não tinha folga semanal, lhe era dado um intervalo de doze horas, aproximadamente, uma vez por semana, quando os próprios Réus percebiam que o Autor mal se aguentava em pé.
Já em depoimento, as circunstâncias fáticas foram narradas de forma substancialmente diferente (p. 249):
INTERROGATÓRIO DO RECLAMANTE: que começou a trabalhar em maio de 2006, como ajudante de cozinha; que parou de trabalhar em 28 ou 29 de agosto de 2009; que quando saiu, era chefe de cozinha; que não foi registrado; que inicialmente recebia R$ 50,00 por dia e R$ 50,00 por noite; que trabalhava dia e noite; que a cada 06 meses mudava o salário; que passou a receber R$ 80,00 por dia e por noite; que depois passou a receber R$ 100,00 por dia e R$ 100,00 por noite; que esse foi seu último salário; que trabalhava das 06 às 12 horas; que almoçava em 20 minutos; que retornava ao trabalho às 12:30 horas e trabalhava até as 19 horas; que jantava em 20/30 minutos; que retornava ao trabalho e trabalhava até as 02/03 horas da manhã; que cumpria essa jornada todos os dias; que tinha uma folga por semana; que não trabalhava aos domingos, além da folga; que em alguns meses trabalhou aos domingos, mas isso era raro; que dormia num quartinho na reclamada; que só ia embora no dia de sua folga; que não recebia outros valores além do descrito acima; que parou de trabalhar porque a reclamada prometia o registro e não cumpria; que o depoente aguardou até agosto quando a reclamada prometeu o registro; que chegado agosto, a reclamada não registrou; que então o depoente arrumou outro serviço e parou de trabalhar; que quando parou de trabalhar nada recebeu. Nada mais.
Contrariando a petição inicial, o obreiro reconheceu a existência de pausas para almoço e jantar, horários diferentes e folga semanal, além da folga aos domingos, circunstâncias não admitidas na petição inicial.
O inconteste descompasso entre a narrativa do obreiro e o relatado na peça exordial, aliada à falta de verossimilhança de suas afirmações autoriza relativizar os efeitos ficta confessio.
Pois bem, em depoimento o autor afirmou realizar duas jornadas consecutivas: a primeira iniciando às 6 horas e encerrando ao meio-dia e a segunda, iniciando às 12h30 e encerrando às 2/3 horas da manhã.
Na petição inicial, porém, esclareceu que a demandada realizava apenas eventos noturnos, os quais "(...) tinham início entre 20:00 e 21:00, se prolongando até as 24:00, durante a semana ou até as 03:00 aos finais de semana" e que o trabalho diurno era destinado à preparação desse evento noturno.
Como o reclamante trabalhava como cozinheiro, não há alicerce fático que justifique a afirmação quanto ao labor matutino (até meio-dia), pois os eventos noturnos só tinham início por volta de 20/21 horas e, conforme documentos acostados aos autos, nem todos os eventos eram realizados para substancial número de convidados, o que, inegavelmente, reflete na jornada do empregado.
Ilustrativamente, destacam-se os eventos realizados nos dias 14.3.2006 (p. 167), 31.7.2006 (p. 171), 9.5.2007 (p. 173), 30.5.2007 (p. 174) e 24.5.2007 (p. 175), todos para menos de 10 convidados.
Diante de tais fatos, a presunção fática decorrente da revelia não pode abarcar o primeiro turno de trabalho afirmado pelo autor, motivo pelo qual é de se fixar sua jornada laboral como sendo, em média, das 12h30 às 2 horas da manhã do dia seguinte, com trinta minutos de intervalo, em cinco dias por semana (o reclamante admitiu folgar uma vez por semana, além dos domingos).
Em consequência, defiro as horas extras excedentes da oitava diária (observada a redução ficta do labor noturno – entre 22 e 2 horas da manhã), com adicional de 65% entre 01.07.2006 e 30.06.2009 (período de vigência dos instrumentos normativos) e 50% no restante do período, considerando o adicional noturno na base de cálculo.
Defiro reflexos das horas extras no RSR, férias com acréscimo de 1/3, 13º salário, aviso prévio, FGTS e multa.
2.4 – HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS
Diante do provimento do recurso, inverto o ônus da sucumbência, condenando o réu em honorários advocatício no importe de 10% do valor da causa, cuja exigibilidade se suspende enquanto mantiver a condição legal de beneficiário da gratuidade judiciária, como se infere do art. 98, § 1º, VI, § 3º, do CPC/2015.
ISTO POSTO
ACORDAM os Ministros da Subseção II Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade, conhecer do recurso ordinário e, no mérito, dar-lhe provimento parcial para julgar procedente a ação rescisória e desconstituir a sentença do processo matriz no capítulo das horas extras; em novo julgamento deferir horas extras e reflexos conforme jornada de trabalho reconhecida. Inverte-se o ônus sucumbencial, ficando suspensa a exigibilidade dos honorários advocatícios, nos termos do art. 98, § 1º, VI, § 3º, do CPC/2015. Transitada em julgado, restitua-se à autora o depósito recursal, nos termos do art. 974, "caput", do CPC/2015.
Brasília, 9 de agosto de 2022.
Firmado por assinatura digital (MP 2.200-2/2001)
AMAURY RODRIGUES PINTO JUNIOR
Ministro Relator
[1] Dellore, Luiz, [et. al.]. Comentários ao Código de Processo Civil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 1385.
Instituto Valentin Carrion © Todos direitos reservados | LGPD Desen. e Adm by vianett