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Ementa
Carina Rodrigues Bicalho - TRT/RJ
UBER. MOTORISTA. VÍNCULO DE EMPREGO. SUBORDINAÇÃO ALGORÍTMICA. EXISTÊNCIA.
PROCESSO nº 0100853-94.2019.5.01.0067 (ROT)
RECORRENTE: VIVIANE PACHECO CAMARA
RECORRIDO: UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA.
RELATORA: CARINA RODRIGUES BICALHO
EMENTA
RECURSO ORDINÁRIO. UBER. MOTORISTA. VÍNCULO DE EMPREGO. SUBORDINAÇÃO ALGORÍTMICA. EXISTÊNCIA. O contrato de trabalho pode estar presente mesmo quando as partes dele não tratarem ou quando aparentar cuidar-se de outra modalidade contratual. O que importa, para o ordenamento jurídico constitucional trabalhista, é o fato e não a forma com que o revestem - princípio da primazia da realidade sobre a forma. No caso da subordinação jurídica, é certo se tratar do coração do contrato de trabalho, elemento fático sem o qual o vínculo de emprego não sobrevive, trazendo consigo acompanhar a construção e evolução da sociedade. A Lei, acompanhando a evolução tecnológica, expandiu o conceito de subordinação clássica ao dispor que "os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio" (parágrafo único do artigo 6º da CLT). No caso em análise, resta claro nos autos que o que a Uber faz é codificar o comportamento dos motoristas, por meio da programação do seu algoritmo, no qual insere suas estratégias de gestão, sendo que referida programação fica armazenada em seu código-fonte. Em outros termos, realiza, portanto, controle, fiscalização e comando por programação neo-fordista. Dessa maneira, observadas as peculiaridades do caso em análise, evidenciando que a prestação de serviços se operou com pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e sob subordinação, impõe-se o reconhecimento do vínculo de emprego. NÃO HOMOLOGAÇÃO DE PROPOSTA DE ACORDO. A não homologação do acordo, cujos termos se apresentam inadequados, não é uma faculdade do magistrado, mas sim um dever, mormente se constatado que a ré se utiliza da técnica da conciliação estratégica por julgador para obter como resultado a manipulação da jurisprudência trabalhista acerca do tema tratado no processo. (TRT-RJ-ROT-0100853-94.2019.5.01.0067, Carina Rodrigues Bicalho, DEJT 28/07/2021)
RELATÓRIO
VISTOS, relatados e discutidos estes autos de RECURSO ORDINÁRIO (0100853-94.2019.5.01.0067), provenientes da MM. 67ª VARA DO TRABALHO DO RIO DE JANEIRO.
O Exma. Juiz do Trabalho, Dr. FABIO CORREIA LUIZ SOARES, pela r. sentença do ID. 98d2394, cujo relatório adoto e a este incorporo, julgou improcedentes os pedidos formulados pela autora.
Inconformada, a autora, VIVIANE PACHECO CAMARA, se insurge. Interpôs o recurso ordinário no ID. 09ce7b3, pretendendo a reforma da decisão de origem em relação ao pedido de reconhecimento de vínculo empregatício, verbas rescisórias, horas extras e indenização por danos morais e materiais.
Contrarrazões pela ré no ID. 08bd87f.
Os autos foram remetidos à Douta Procuradoria do Trabalho, que opinou pelo regular prosseguimento do feito, consoante manifestação no ID. bb4a51e.
Arguida a suspeição da relatora por meio da Exceção de Suspeição 0102475-84.2020.5.01.0000 (ExcSusp), a qual foi rejeitada, conforme os termos do acórdão de ID 533b848.
É o relatório.
FUNDAMENTAÇÃO
QUESTÃO DE ORDEM: Da não homologação da proposta de acordo
Restou evidenciado no acórdão do Processo nº 0102520-88.2020.5.01.0000, em que foi rejeitada a Exceção de Suspeição apresentada pela recorrida, cujos fundamentos tomo de empréstimo, que a não homologação do acordo não é uma faculdade do magistrado, mas sim um dever, qualquer que seja a "vontade das partes em celebrarem o acordo".
E, de fato, pesquisas acadêmicas como a mencionada no referido acórdão vêm comprovando que a recorrida se utiliza da técnica da conciliação estratégica por julgador para obter como resultado a manipulação da jurisprudência trabalhista acerca do tema tratado no presente processo.
Acontece que essa litigância manipulativa foi alvo de recente enfrentamento pelo Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região.
Explico: no processo 0010258-59.2020.5.03.0002, em que litigavam "Rodrigo de Almeida Macedo versusUber do Brasil Ltda", a sentença foi de improcedência, sendo recorrente, portanto, o reclamante. As partes apresentaram petição de acordo em 17/11/2020, um dia antes do dia da sessão de julgamento, às 15h20min, requerendo a retirada do processo de pauta de julgamento para a homologação do acordo.
A matéria estava afeta à competência monocrática do Desembargador Relator, pois compete ao Relator "dirigir e ordenar o processo no tribunal, inclusive em relação à produção de prova, bem como, quando for o caso, homologar autocomposição entre as partes"(art. 932, inciso I, do CPC).
O Regimento Interno do TRT3 dispõe que cabe ao Relator ordenar e dirigir os processos que lhe sejam distribuídos, até a redação do acórdão e, em relação aos processos ainda não incluídos em pauta, determinar a devolução dos autos ao juízo de primeira instância, para decisão sobre o pedido de homologação de acordo (art. 140, inc. V e XIV RITRT3).
Considerando que a petição de acordo foi apresentada menos de 24 horas antes do horário da sessão de julgamento e o prazo para o despacho é de cinco dias (art. 226, I, CPC c/c art. 769, CLT), com base nas premissas que orientam as políticas de administração de justiça em curso no Poder Judiciário brasileiro, o Relator considerou temerária a apreciação do pedido em prazo tão exíguo.
No tocante ao mérito e trazendo à baila o enfrentamento do uso estratégico do processo com o objetivo de manipular a jurisprudência, fundamentou o Desembargador Relator:
"Quanto ao mérito do pedido, este Relator tem a ponderar que a reclamada tem dado sinais de uso estratégico do processo com o objetivo de fazer transparecer uma visão distorcida do estado da arte da jurisprudência acerca da questão relativa à existência ou não de vínculo empregatício entre os motoristas e as empresas que se utilizam de plataformas virtuais na conexão entre clientes de serviços de transporte de pessoas e motoristas, como é o caso da recorrente. Isto ocorre na medida em que em número considerável de demandas a reclamada tem se disposto a celebrar acordo apenas nos casos em que se visualizam razões suficientes para se supor que o órgão julgador irá decidir em sentido contrário ao seu interesse. Tal postura deixa transparecer uma possível estratégia de se evitar a formação de jurisprudência no sentido do reconhecimento de vínculo empregatício, interferindo, desta maneira, que os Tribunais cumpram sua missão de unificar a jurisprudência por intermédio dos instrumentos processuais destinados a esse fim. A estratégia compromete de modo peremptório o cumprimento da função do Poder Judiciário de realizar a justiça, impedindo o fluxo natural da jurisprudência e a configuração da pluralidade de entendimentos para que, enfim, as instâncias competentes possam consumar o posicionamento definitivo sobre a matéria.
Assim, parece bastante plausível que, ao se disporem a fazer acordo em casos tais, busca se evitar decisões que reconheçam a existência de vínculo de emprego entre as partes. Se configurada a estratégia, ela concorre para que a comunidade jurídica e os trabalhadores desse setor de atividade tenham a impressão de que a jurisprudência é, por princípio e em quaisquer circunstâncias, uníssona em uma direção, ainda que não se tenha quaisquer precedentes de uniformização de jurisprudência sobre a matéria, o que, de resto, não deverá acontecer porquanto as controvérsias em casos como o que aqui se discute situam-se no campo dos fatos. Generalização desta apenas aparente concepção unitária da jurisprudência acaba por desestimular trabalhadores que tenham fortes razões para levar seu caso à apreciação do Poder Judiciário, deixando de fazê-lo por absorver a existência de higidez da jurisprudência - dissimulada pela estratégia adotada pela reclamada - no sentido da inexistência de vínculo empregatício nesse tipo de relação de trabalho medida por algoritmos.
A estratégia de conciliar apenas em segundo grau, às vésperas das sessões de julgamento, a depender do órgão colegiado que julgará o feito, põe luzes a um contexto mais abrangente.
As políticas de administração da justiça nacional têm enfatizado intensamente ações institucionais e interinstitucionais no sentido de conferir tratamento adequado dos conflitos, no que se inclui o fomento aos meios consensuais, judiciais e não judiciais, de resolução dos conflitos. Uma profunda transformação paradigmática se verifica na administração da justiça, atualmente. Incumbe aos Tribunais interagir com as demais instituições do sistema de justiça, com as universidades, com instituições, sindicatos e atores da sociedade, com vistas à construção de programas de prevenção, solução consensual dos conflitos. Capítulo especial, diz respeito aos litígios massivos/repetitivos como o que se afigura nestes autos.
Visa-se primordialmente realizar a justiça e melhorar a qualidade da administração da justiça, e, secundária e estrategicamente, tornar o poder judiciário, mais célere e mais eficiente na garantia da efetividade da ordem jurídica, mediante a redução das elevadas taxas de congestionamento, especialmente em situações em que tal fato é desnecessário e resulta de eventual estratégia de qualquer das partes. Nesse sentido, cabe lembrar a Resolução 174/2016 (CSJT) que institui no âmbito da Justiça do Trabalho a política de tratamento adequado dos conflitos por intermédio dos Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Resolução de Disputas e dos Centros Judiciários de Métodos Consensuais de Solução de Disputas. Na mesma perspectiva, visualiza-se a Meta 09 da Estratégia do Poder Judiciário Nacional que integraliza a Agenda 2030 (ONU) ao Poder Judiciário por meio de medidas de prevenção de litígios e de judicialização que, no âmbito deste Tribunal, institucionaliza-se através do Programa de Administração de Justiça Consensual, pelo qual se instauram procedimentos de diálogo para diagnóstico e concertação interinstitucional com empresas cuja atividade constitui-se como foco de demandas massivas com objetivo de alcançar solução sistêmica e consensual para tais casos.
A estratégia adotada pela reclamada implica também em agravamento das taxas de congestionamento e dispêndio inócuo da força de trabalho dos magistrados e servidores, à medida que a movimentação de toda essa estrutura para que os processos sejam incluídos em pauta torna-se sem qualquer efeito no momento em que às vésperas do julgamento, sistematicamente, são protocoladas petições com pedido de retirada do processo de pauta para a celebração de acordo, tornando inócuo o trabalho de análise, processamento e tramitação dos autos, nesta instância, quando a possibilidade de conciliar poderia ser analisada em instância apropriada, evitando-se o desvio de força de trabalho de outras demandas que requerem, de fato, a concretização da prestação jurisdicional.
Além do mais, em lugar de optar por submeter a situação geradora de um grande número de demandas repetitivas a tratamento adequado pelas vias consensuais preventivas, a reclamada tem optado por instrumentalizar e fazer uso estratégico do processo e do próprio Poder Judiciário com o fim de legitimar por via oblíqua as práticas e conduta adotadas no capítulo "relações de trabalho" de suas atividades empresariais.
Esse comportamento assume uma dimensão mais grave quando se denota que o "acordo" celebrado contempla cláusula de renúncia de pretensões (e direitos, na medida em que no presente caso foi reconhecida a existência de vínculo empregatício entre as partes), nos seguintes termos (ID a279851):
"O Reclamante e a Reclamada, através da celebração do presente acordo judicial, ajustam pôr fim à lide, de modo que o Reclamante renuncia às pretensões formuladas na petição inicial e, por consequência (grifo original), requer a desistência do recurso ordinário sob o id. rc072d3, o qual se encontra pendente de julgamento" (Cláusula 1ª, 1.1).
"A Reclamada pagará a Reclamante a importância líquida e certa de R$10.000,00 (dez mil reais), a título de indenização, em razão da rescisão da parceria comercial, cujo pagamento, em parcela única..." Cláusula 2ª, 2.1).
"Com o pagamento ... a Reclamante dará à Reclamada, e aos seus sócios, bem como a quaisquer outras empresas do grupo, plena, geral e irrevogável quitação das verbas postuladas na petição inicial, bem como toda e qualquer relação jurídica havida com a Reclamada, para nada mais postular, seja a que título for, em qualquer juízo ou fora dele, seja na esfera trabalhista, civil ou criminal, englobando tal quitação inclusive eventual ação indenizatória decorrente de dano moral ou material, seja acidentária ou decorrente de qualquer outro dano moral ou material, seja acidentária ou decorrente de qualquer outro fato ocorrido no curso da relação jurídica havida, bem como todas as verbas decorrentes do contrato. " (Cláusula 4ª, 4.1).
"A quitação outorgada pela reclamante compreende, ainda, qualquer ação que, em seu nome ou apenas em seu benefício, eventualmente tenha sido ou esteja sendo promovida pelo sindicato representativo de sua categoria ..." (Cláusula 4ª, 4.2).
"As partes reconhecem expressamente a inexistência de vínculo de emprego entre si, bem como a inexistência de prestação de serviços, em favor da reclamada ..." (Cláusula 4ª, 4.3).
"Por força do presente ajuste, as partes requerem a imediata suspensão do feito, bem como a sua retirada de pauta de julgamento (grifo original), para a homologação do acordo, sendo que, na remota hipótese de não homologação do presente acordo, o que se cogita apenas por cautela, requerem as partes que o feito seja suspenso pelo prazo de 15 (quinze) dias para nova negociação e, sucessivamente, que este retorne à ordem, para que seja proferida a sentença" (Cláusula 5ª, 5.4).
Vê-se, portanto, que o acordo celebrado oculta grave vício de consentimento determinante de renúncia quanto aos fatos e quantos aos direitos deles decorrentes, pelo que ficou desfigurado, por completo, o caráter transacional indispensável à validade do acordo.
A estratégia da reclamada, portanto, confere-lhe vantagem desproporcional porque assentada em contundente fraude trabalhista, reforçada pela aparente uniformidade da jurisprudência dissimulada a existência de dissidência jurisprudencial quanto à matéria que, de modo ainda mais danoso, aparenta que a jurisprudência se unifica também no sentido de admitir, a priori, que os fatos também se configuram exatamente de modo uniforme em todos os processos.
Nota-se, portanto, que a "política" adotada pela reclamada, além de obstaculizar a realização da justiça ao equiparar renúncia e transação, compromete a eficiência, racionalidade e a economicidade dos atos processuais, que são princípios constitucionais basilares que regem a Administração Pública.
Nestes termos, é relevante a transcrição literal do Parecer emitido pelo Ministério Público do Trabalho (ID 8239450), nestes autos:
"O MPT pede para que não seja homologado o "acordo" porque o que está a ocorrer, data venia, é que o Recdo está manipulando o resultado da distribuição de processos em segundo grau, ou seja, dependendo do entendimento jurídico predominante do DD. Relator(a)que e já anteriormente conhecido por todos, através dos acórdãos anteriores, a empresa tenta impedir o julgamento através de celebrações de "acordos", porém, se o entendimento jurídico do DD. Relator (a) lhe é favorável então a empresa deixa o processo ir a julgamento.
Ora, novamente, data máxima venia, este procedimento é tanto fraudador do JUÍZO NATURAL CONSTITUCIONAL (no caso de Segundo Grau) quanto configura-se "contempt of court" ofensa a dignidade da Justiça, art.77, §2º, CPC, o que também ao final é manipulação de jurisprudência, sobretudo para fins de formar IRDR favorável (porém irreal) ao Recdo.
Segue a planilha abaixo onde pode-se através da Jurimetria aferir que nas Turmas onde o posicionamento jurídico da E. Turma não é favorável ao Recdo data maxima venia (sem nenhuma crítica e com todo o respeito) como a E. 9ª Turma, [havendo de se indagar porque] NÃO É OFERTADO O ACORDO pela empresa? E por que, amiúde, os processos distribuídos às E.1ª, 4ª e 11ª Turmas, ANTES DO JULGAMENTO TÊM O ACORDO OFERTADO PELA RECDA?"
Pesquisa jurimétrica realizada pelo Parquet, com resultados levantados parcialmente e, por enquanto, por amostragem, no universo de 279 processos em trâmite contra a reclamada, houve oferta de proposta e celebração de acordo exatamente nas turmas em que já houve o reconhecimento de vínculo de emprego entre as partes.
Ainda, como medida de racionalização da administração da justiça e da gestão judiciária, fundada nos princípios da eficiência, economicidade e busca da efetividade dos direitos e do acesso à justiça, em favor de todos os atores envolvidos determina-se o encaminhamento do presente caso ao Órgão Coordenador do cumprimento da Meta 09, neste Tribunal, para que, por meio do diálogo e do entendimento com a empresa reclamada e nos termos da política de administração de justiça acima referida, seja analisada a possibilidade de instauração de Projeto de Administração de Justiça Consensual específico para a empresa UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA., orientado para a concepção de instrumentos institucionais para o tratamento adequado de tais litígios bem como a adoção de medidas de solução consensual e preventivas adequadas à situação vertente.
Esclareça-se, enfim que, definitivamente, não se tem o intento de obstaculizar a consumação do acordo celebrado pelas partes, mas tão somente explicitar questões diretamente relacionada às políticas de administração da justiça e de tratamento adequado dos conflitos, dada a especificidade do caso vertente. (BRASIL, 2020a)".
Do corpo do voto acima é possível destacar a menção à existência de pesquisa jurimétrica feita pelo Parquet no tocante às Turmas do TRT3, bem como em quais delas os acordos costumam ser propostos, e com base nesse estudo, o Décima Primeira Turma do TRT 3 decidiu pela não homologação do acordo entabulado entre a Uber e o reclamante.
Além dessa decisão do TRT3, importante citar que, em agosto de 2016, a Corte do Estado da Califórnia (EUA) deixou de homologar o acordo proposto pela Uber por não achar que era justo, adequado e razoável, conforme "Case 3:13-cv-03826" [1] , exatamente como aconteceu na situação dos presentes autos.
É dever do magistrado que conduz o processo o conhecimento da causa bem como a análise dos termos de acordo à luz do conhecimento jurídico sobre a matéria. Por entender que o acordo apresentado não é adequado, esta relatora propôs a majoração do valor do acordo e inclusão de cláusula obrigacional de registro da CTPS e recolhimento previdenciário respectivo. Ao assim agir, a Relatora estava efetivando o princípio da primazia do mérito integrativo, incentivando a conciliação, sem extrapolar os poderes que lhe são concedidos na qualidade de julgadora.
E, ainda que se insira na condução do processo que incumbe ao relator deliberar se a proposta de acordo deve ser levada ao colegiado ou homologada monocraticamente, entendendo que a decisão de homologação (ou não) do acordo é um ato jurisdicional e, como tal, fundado no convencimento motivado do magistrado o que, em instância recursal, é da competência natural do órgão fracionário do Tribunal a que pertence o relator que recebeu o processo em livre distribuição, seja pela repercussão social ou pela relevância que o tema impõe.
Por tal razão, encaminho a proposta de acordo ao colegiado, por sua não homologação, pelos motivos acima expostos.
[1] Court cannot find that the PAGA settlement is fair and adequate in view of the purposes and policies of the statute. Plaintiffs propose settling PAGA for only 0.1% of the potential verdict value, a reduction that the LWDA has found has no rational basis. 21 This 99.9% reduction does not adequately reflect the parties respective risks, particularly when the PAGA claim would not be subject to the same arbitration risk that this Court has found justifies in part the 90% discount in the verdict value of the non-PAGA claims. Instead, the risks at issue rest primarily on the merits of drivers labor codes claims and the discretionary reduction of statutory penalties, not on the risk of compelled arbitration. However, as discussed above, those risks are not limited to Plaintiffs; Uber also takes on a significant risk that should a representative PAGA claim be litigated and adjudicated, it could lose on this question (especially given that this Court has found a presumption of employee status, see March 11, 2015 Summary Judgment Ord. at 15), and such an adverse judgment would carry not only a direct monetary penalty, but potentially could affect other litigation including arbitrations. Instead of adequately considering these risks to Uber and the full value of the PAGA claim, in settling the PAGA claim herein, Plaintiffs appear to treat the PAGA claim simply as a bargaining chip in obtaining a global settlement for Ubers benefit, even though the PAGA claim alone is worth more than half of the full verdict value of all claims being released. The Court shares the LWDAs view that there is "no rationale for allocating $1 million of the proposed settlement fund to the PAGA claim . . . other than that this is a „round number and a large figure in comparison to other PAGA settlements," LWDA Resp. at 3. Given the sweeping consequences of the proposed PAGA waiver, viewed in the context of a relatively modest settlement of the non-PAGA claims, the Settlement Agreement is not as a whole is fair, adequate and reasonable. (Case 3:13-cv-03826-EMC Document 748 Filed 08/18/16 Page 1 of 35)
ADMISSIBILIDADE
Satisfeitos os pressupostos recursais formais, conforme certidão de ID. 72f8e3b, conheço do recurso ordinário da reclamante.
MÉRITO
DO VÍNCULO DE EMPREGO
Pugna a autora pela reforma da decisão de origem para que seja reconhecida a existência de vínculo empregatício com a ré.
Em síntese, alega que "O autor estava submisso a ordens sobre o modo de desenvolver a prestação dos serviços e a controles contínuos. Além disso, estava sujeito à aplicação de sanções disciplinares caso incidisse em comportamentos que a ré julgasse inadequados ou praticasse infrações das regras por ela estipuladas".
Aduz que a autora estava submetida a novas formas de controle por parte do empregador, o que não desconfiguraria a relação de emprego existente, eis que "Assim a reclamada, através dos avanços tecnológicos sempre conseguiu verificar o desempenho dos motoristas".
O juízo de origem julgou improcedente o pedido nos seguintes termos:
"Do vínculo empregatício
Persegue a parte autora o reconhecimento do vínculo empregatício com o reclamado no período compreendido entre 01.12.2018 e 30.05.2019, alegando que prestava serviços de motorista em favor da ré com todos os requisitos dos artigos 2º e 3º da CLT.
De seu turno, o reclamado alega em contestação ser uma empresa que "explora plataforma tecnológica que permite a usuários de aplicativos ("usuário(s)") solicitar, junto a motoristas independentes ("motoristas parceiros"), transporte individual privado. Tanto usuários como motoristas têm um cadastro no aplicativo e aceitam as condições de uso prevista no aplicativo ("Termos de Uso")."
Assim, considerando que na contestação não houve indicação de desconhecimento de quem seria o reclamante e da atividade desempenhada por ele, cabe à ré, portanto, o ônus da prova quanto aos fatos impeditivos, modificativos e extintivos do direito da autora, a teor do artigo 818, inciso II, do CLT.
Em depoimento pessoal, o reclamante confessou "que se cadastrou no aplicativo em janeiro ou fevereiro de 2018, mas começou a trabalhar, efetivamente, no final do ano;" e "que fez cadastro pelo aplicativo; que não houve entrevista, nem treinamento; que não houve vistoria do automóvel pela UBER; que teve acesso aos termos de uso e precisava concordar com eles; que trabalhou exclusivamente na UBER; que não havia qualquer pessoa dizendo o horário em que deveria trabalhar; que não havia qualquer outro tipo de ordem; que havia avaliação pelos usuários; que também avaliava os usuários por meio de estrelas, para ambos os casos; que havia obrigação de fornecer água e bala; que a empresa não fiscalizava isso; que não aconteceu de ficar sem esses produtos; que ficava online quando estava trabalhando e aceitava todas as viagens; que, quando ia resolver alguma questão pessoal, desligava o aplicativo; que não precisava avisar que ficaria offline; que poderia aceitar a viagem e depois cancelar; que o trajeto a ser cumprido é escolhido pelo usuário; que acredita que o percentual da ré era de 20%, mas não tem certeza; que não poderia dar descontos em pagamentos em dinheiro; que não recebia se ficasse sem trabalhar; que não utilizava outros aplicativos; que poderia usar esses aplicativos; que não poderia cadastrar outras pessoas vinculadas à sua conta; que seu veículo era próprio; que o telefone celular era próprio; que arcava com os custos de internet."
Pelos trechos do depoimento acima transcrito, infere-se que o processo de admissão foi simples com a mera apresentação de documentos e poderia ser realizado integralmente pela internet, que não havia exigência de jornada mínima de trabalho, que a remuneração variava de acordo com as corridas realizadas não tendo garantido valor mínimo mensal, que os custos com telefone celular, internet, combustível e manutenção eram de responsabilidade do motorista, que não houve qualquer fiscalização da ré quanto ao veículo utilizado pela parte autora, que aceitou os termos e condições da ré, que poderia se cadastrar em outro aplicativo concorrente, que o motorista era quem decidia o tempo que ficaria "off-line" e os dias que utilizaria o aplicativo, que poderia rejeitar corridas, que não havia tempo mínimo de horas por dia para ficar "on line" e que não era avaliado pela empresa, mas apenas pelos usuários.
A controvérsia dos autos é saber se as condições impostas pela ré para o ingresso e a manutenção do
motorista em seus cadastros são suficientes para a caracterização dos requisitos do vínculo empregatício, quais sejam subordinação, pessoalidade, onerosidade e não eventualidade.
Restou incontroverso que o autor era o dono e o responsável pelas suas ferramentas de trabalho, que fez cadastro e demorou meses para começar a trabalhar, que não havia obrigação de cumprir jornada mínima, que não recebeu ordens diretas, que não sofreu fiscalização e que recebia apenas pelo tempo trabalhado.
Tais fatos deixam evidenciada a inexistência da não eventualidade, porque o autor poderia escolher os dias e horários que trabalharia, sem qualquer tipo de ingerência da ré.
Quanto ao requisito da subordinação, o depoimento da parte autora apontou que não havia fiscalização quanto a horários, rotas, tempo mínimo de trabalho "ou qualquer outro tipo de ordem".
De todo modo, eventuais orientações quanto a modos de conduta adequados, gentis, educados e limpeza do veículo estão no contexto de orientações gerais e aplicáveis a todos que pretendem se relacionar no mundo do trabalho e da prestação de serviços, não podendo ser interpretado como uma ordem específica de empregador. Inexistindo ordens diretas da ré ao autor, fiscalização pela empresa acerca dos serviços
prestados e escolha de dias e horários da prestação de serviços, não vislumbro o requisito da subordinação jurídica.
Quanto ao requisito da onerosidade, resta incontroverso que o autor ficava com cerca de 75%/80% do valor total do serviço, o que supera mais da metade do valor cobrado e distancia a situação fática do reclamante do típico empregado celetista.
Isso porque o percentual de 75%/80% do valor total do serviço prestado não se enquadra no conceito de salário, pois representava muito mais da metade do valor total do serviço.
Se a doutrina e a jurisprudência já reconhecem a existência de parceria quando o percentual ajustado é de cerca de 50% do valor do serviço, com mais razão para não reconhecer que não se trata de salário quando esse percentual for superior.
O reclamante possuía ampla liberdade para a realização das suas atividades, em horários, quantidade de horas e locais a serem definidos por ele, poderia acumular a atividade de motorista do aplicativo da ré com outros aplicativos concorrentes ou com outra atividade de carteira assinada, e ficar sem trabalhar por algumas semanas, situações incompatíveis com a figura jurídica do empregado.
Por todo o exposto, não restando caracterizados os requisitos legais acima expostos, improcede o pedido de vínculo empregatício e os demais consectários postulados, inclusive os pedidos de indenização por danos morais e ressarcimento de despesas por serem decorrentes do pedido principal".
E, por oportuno, transcrevo conclusão do parecer do Ministério Público do Trabalho (ID. bb4a51e):
"A relação jurídica entre a UBER e os motoristas de sua plataforma digital é a de trabalho subordinado, o que enseja o reconhecimento dos direitos sociais previstos no art.7º da Constituição da República. É o mais coerente, diante da nova situação criada pela empresa. Note-se que mesmo em relação aos trabalhadores avulsos, cuja realidade é bem diversa da vivenciada pelos motoristas da UBER, são assegurados os citados direitos. Ademais, em face da ausência de plena identificação com alguma modalidade específica de contrato de trabalho, ao caso em concreto devem ser aplicados, pela maior aproximação, e por analogia, o §3º do art.443 e o 452-A da CLT, que dispõem sobre o contrato de trabalho intermitente, no que for cabível. Por conseguinte, opina pelo julgamento de procedência do pedido de reconhecimento do vínculo empregatício entre as partes. Considerada a única questão jurídica que justifica a intervenção ministerial no feito, não será proferido parecer sobre as demais pretensões".
Analiso.
A controvérsia posta é, portanto, quanto à natureza jurídica da relação entre a trabalhadora Viviane Pacheco Camara e a empresa Uber do Brasil Tecnologia Ltda, cujo vínculo empregatício teria sido mascarado por um contrato cível de intermediação digital consubstanciado na adesão da autora aos "TERMOS E CONDIÇÕES GERAIS DOS SERVIÇOS DE INTERMEDIAÇÃO DIGITAL" (ID. d5f5abe) e ao "ADENDO DE MOTORISTA" (ID. 3151b5d).
A investigação do enquadramento de um trabalhador como empregado percorre a análise dos elementos fático-jurídicos da relação de emprego que se extraem da leitura conjunta dos artigos 2º e 3º da CLT: pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e subordinação jurídica.
Exaure-se, quando há alegação de que o vínculo empregatício esteve encoberto, mascarado ou disfarçado no contexto de outras relações que possam incluir o uso de formas de acordos contratuais que escondam o verdadeiro status legal do empregado, ao levantar-se o véu da forma para alcançar o fato, requalificando-o juridicamente.
Tem-se que o elemento distintivo da subordinação se configura ainda que o poder de controle comando se deem por meio dispositivos eletrônicos, como é o caso de comandos inseridos no algoritmo do software utilizado por plataforma, pois são meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão que se equiparam aos meios pessoais e diretos de subordinação jurídica por expressa dicção legal (art. 6º, parágrafo único, da CLT).
Importa ressaltar esse aspecto para o qual o legislador atentou há alguns anos, a partir da lei 12.551/2011, uma vez que as transformações na realidade dos processos de trabalho têm promovido reiteradamente a migração das formas pessoais de controle para formas de controle informatizadas, inclusive mediante o uso de aplicativos digitais geridos por inteligência artificial.
Se as formas de gestão do trabalho incorporam cada vez mais essas novas tecnologias, daí não decorre que o Direito do Trabalho deva se autoexcluir desses novos cenários tecnológicos e organizacionais.
Ao revés, sendo o modelo jurídico do emprego o padrão básico de regulação do trabalho humano no Brasil, incumbe manter atualizado o conceito de emprego sob pena de, em caso contrário, aí sim, o Direito do Trabalho perder relação com o mundo do trabalho e sua razão de ser.
À luz da primazia da realidade, é essencial manter a atualidade do padrão jurídico de proteção do emprego, notadamente quanto ao conceito de subordinação.
A definição de emprego tem transcendente importância no sistema constitucional brasileiro. A Constituição brasileira, no art. 7º, prevê uma série de direitos fundamentais dos trabalhadores. Embora diversos deles sejam aplicáveis a qualquer relação de trabalho humano, é certo que muitos desses direitos fundamentais são específicos das relações de emprego. Isto porque é, no direito brasileiro, o regime de emprego aquele que consubstancia o padrão jurídico de proteção do trabalho humano. Note-se que mesmo quando a Constituição previu regimes jurídicos diferenciados de trabalho, como avulso e doméstico, tratou de equipará-los essencialmente ao regime de emprego. Daí que sequer o legislador tem plena liberdade para definir o regime de emprego, ainda que a constituição não o tenha feito, pois tal conceito é o pressuposto da incidência de direitos fundamentais, não podendo o legislador excluir arbitrariamente hipóteses fáticas desse conceito, falando a doutrina, aí, de limites materialmente constitucionais ao legislador. (WANDELLI, Leonardo Vieira. O direito humano e fundamental ao trabalho: fundamentação e exigibilidade. São Paulo, LTr, 2012, p. 303-304)
Assim também o próprio intérprete judicial, ao concretizar as normas legais relativas à definição de emprego deve ter em conta o papel central que essa definição cumpre no sistema constitucional de proteção do trabalho humano. Ainda que as formas não empregatícias de trabalho também mereçam proteção jurídica, o direito humano e fundamental ao trabalho implica o direito a um padrão jurídico de proteção do trabalho que deve se manter hígido diante das transformações da realidade das relações de trabalho.
Nesse sentido, o relatório apresentado pelo Alto Comissário em Direitos Humanos da ONU ao Conselho de Direitos Humanos, sobre o direito ao trabalho, em 2016, ao sustentar a extensão da proteção do trabalho humano às formas não assalariadas de trabalho, estabeleceu, como condição necessária, não se permitir o esvaziamento do conceito de trabalho assalariado juridicamente protegido:
53. O direito ao trabalho abrange todo o tipo de trabalho, por conta própria ou por conta de outrem mediante salário. O trabalho humano é digno de reconhecimento social em suas diferentes formas. Embora alguns direitos, como férias remuneradas, sejam específicos dos trabalhadores assalariados, os trabalhadores autônomos ou cooperados também têm direito a condições de trabalho justas e favoráveis. A valorização de outras formas de trabalho depende de duas condições: a) que isso não esvazie a definição ou a proteção do trabalho assalariado; e b) que, independentemente dos diversos esquemas de proteção aplicáveis aos trabalhadores não assalariados, esses trabalhadores gozem de condições de trabalho eqüitativas e satisfatórias equivalentes às dos assalariados. (Human Rights Coucil, Realização do Direito ao Trabalho. 2016. A/HRC/31/32, disponível em https://ap.ohchr.org/documents/dpage_e.aspx?si=A/HRC/31/32).
A importância dessa diretriz há de pautar a interpretação do conceito de emprego diante das transformações tecnológicas e de mercado, mormente considerando-se que, no Brasil, inexistem esquemas suficientes de proteção das formas não assalariadas de trabalho.
É esta a trilha de indícios qualificadores que o voto pretende percorrer valendo-se da técnica que o orienta o Juiz a fazer uma valoração global da relação de trabalho que está sendo qualificada aplicada à análise dos elementos fáticos dos autos, orientada pelos conceitos e princípios expostos.
Da pessoalidade.
O requisito da pessoalidade exige que o empregado exerça suas atividades pessoalmente, sem se fazer substituir, a não ser de forma esporádica e com a anuência de seu empregador.
A defesa não nega que a Viviane tenha se cadastrado na plataforma e prestado serviços de transporte individual dos usuários clientes, justificando que cada motorista deve se identificar na plataforma por questões de segurança. Afirma que o "usuário motorista" cadastrado deve ser aquele que irá prestar os serviços ao "usuário passageiro".
Resta incontroverso, portanto, que Viviane estava identificada na plataforma e quando era conectada para realizar a atividade de transporte de um usuário, por segurança, Viviane e apenas Viviane poderia se apresentar para realizar a tarefa junto ao cliente.
A Uber, portanto, exigia que a atividade fosse prestada pela trabalhadora, pessoalmente, restando evidente o requisito da pessoalidade. E mais, Viviane não poderia se fazer substituir.
Argumenta a defesa que "a Plataforma permite que mais de uma pessoa se cadastre de forma a compartilhar o mesmo veículo. Portanto, um determinado veículo de propriedade de um Motorista, pode ser utilizado por diversos Motoristas Parceiros, desde que, tais Motoristas se identifiquem na Plataforma."
O veículo utilizado poderia ser compartilhado - o que em nada interfere na análise da pessoalidade, pois cada motorista deve estar identificado na plataforma permitindo que a UBER e seus usuários clientes saibam quem irá se apresentar para realizar a atividade humana intermediada - transporte do passageiro "usuário cliente" do ponto A ao ponto B. A cada motorista corresponde uma identificação pessoal junto a UBER ainda que o objeto - veículo - possa ser comum ou compartilhado.
Não se pode confundir o objeto - veículo - com o sujeito - a pessoa humana - que o conduz. O compartilhamento do veículo entre motoristas não afasta a exigência de que aquele trabalhador, chamado pela defesa de "usuário motorista", e somente ele, naquele veículo ao qual se vinculou junto a UBER, exerça suas atividades pessoalmente.
A propósito da exigência de que a atividade seja exercida pessoalmente pelo trabalhador cadastrado diz o contrato de adesão nominado ADENDO DE MOTORISTA AOS TERMOS E CONDIÇÕES GERAIS DOS SERVIÇOS DE INTERMEDIAÇÃO DIGITAL (ID. 3151b5d):
"2.1. ID de motorista. O(A) Motorista receberá de um ID de Motorista para a prestação de Serviços de Transporte para permitir que o(a) Motorista acesse e use o Aplicativo de Motorista em um Dispositivo de acordo com esse Adendo. O(A) Motorista manterá seu ID de Motorista em sigilo, não o compartilhará com terceiros(as) e notificará imediatamente o(a) Cliente caso ocorra qualquer violação ou uso inadequado, efetivo ou potencial, do ID de Motorista ou do Aplicativo de Motorista". (grifo nosso)
A definição de motorista, por sua vez, traz o elemento pessoa física como essencial indicando o que qualifica a pessoa física como motorista: "(a) que atenda os requisitos então vigentes da Uber para ser um(a) motorista ativo(a) que utiliza os Serviços da Uber; (b) a quem a Uber autorizou a acessar os Serviços da Uber para prestar Serviços de Transporte em favor do(a) Cliente; e (c) que, no caso de um(a) representante, funcionário(a) ou prestador(a) de serviços do Cliente, tenha assinado o Adendo de Motorista."
A testemunha ouvida a rogo da ré confirma a necessidade de que a pessoa candidata a obter autorização para prestar serviços de transporte por meio da Uber passe por uma "investigação interna", o que reforça a ideia de que somente essa pessoa aprovada poderá colocar-se em contato com o cliente usuário passageiro não podendo se fazer substituir por terceiro estranho ao empregador.
Nas palavras da testemunha Vitor da Silva: "que existe uma verificação interna, uma análise de segurança interna, embora o candidato possa se cadastrar novamente; que só são ativados os motoristas que passam por esta análise de segurança interna". (ID. e41ba3a)
O preposto, por sua vez, diz que "que, desde 2017, por imposição legal, é necessária a certidão de antecedente criminal;" nada dizendo acerca da forma de contratação da Viviane.
O TERMO E CONDIÇÕES GERAIS DOS SERVIÇOS DE INTERMEDIAÇÃO DIGITAL indica no item 3.1 que o motorista poderá sofrer verificações de segurança e histórico de direção e no item 3.3 está consignada a possibilidade da UBER verificar de forma independente a documentação do motorista, a qualquer momento.
O trabalhador precisa ser aprovado e, portanto, o fato de ter se cadastrado no site em muito se assemelha à manifestação de interesse do candidato à vaga para trabalho, não levando à conclusão de que é o trabalhador quem contrata a Uber, como repisa a defesa.
Aliás, um contrato é sempre bilateral sendo falacioso o argumento de que "foi a reclamante quem contratou a reclamada"mormente quando se evidencia que a trabalhadora precisava ser previamente aprovada, indicando que é a UBER quem escolhe e não, que é a escolhida. E mais, estamos diante de um contrato de adesão com cláusulas pré-definidas e não modificáveis pela parte aderente, a trabalhadora, que nem mesmo tem seu nome grafado no documento de ID. d5f5abe. É feita invisível, em que pese imprescindível.
O ID de Motorista é pessoal e intransferível o que, por si só, amolda-se perfeitamente ao elemento fático jurídico da pessoalidade, evidenciando-se que a relação jurídica é intuito personae com relação ao trabalhador.
E, ainda que a ré argumente em sua defesa a inexistência da exigência de ser pessoa física aquele que assina o TERMO E CONDIÇÕES GERAIS DOS SERVIÇOS DE INTERMEDIAÇÃO DIGITAL - o que, a propósito, é irrelevante para análise do presente processo pois Viviane é uma pessoa física e nessa condição se vinculou à Uber - da análise do TERMO extrai-se que cada pessoa física que irá dirigir um veículo utilizado para o transporte de passageiro deverá assinar um documento denominado "Adendo de motorista". Apenas após ser avaliado, atender aos requisitos e, se aceito para Uber, é que será autorizado a prestar serviços de transporte.
Quando a defesa diz que não há falar em pessoalidade pois "Usuário pode ser atendido por qualquer um dos Motoristas Parceiros disponíveis na Plataforma naquele momento, sendo impossível escolher algum Motorista Parceiro em especial" está invisibilizando a Viviane, como faz durante todo o processo em que seu nome não é referido, valendo a defesa de termos genéricos como usuário motorista e motorista parceiro, pois seu modelo de negócio só percebe que os motoristas são serem humanos quando esses deixam de seguir os regulamentos e protocolos.
O tipo de personalidade do trabalho não importa, desde que não saiam do trilho traçado: atendam ao usuário passageiro como indicado no TERMO E CONDIÇÕES GERAIS DOS SERVIÇOS DE INTERMEDIAÇÃO DIGITAL. Importa que seja uma pessoa física, que seja aprovado e esteja identificado por um ID de motorista e que siga o roteiro: o negócio não pode parar.
Concluo, portanto, que a relação jurídica entre Viviane e Uber foi marcada pela pessoalidade característica de um contrato de trabalho.
Da não eventualidade e os "fins do empreendimento" econômico da UBER.
Defende a ré a inexistência de habitualidade no trabalho prestado pela autora, pois "não existem dias e horários obrigatórios para a realização das atividades do Motorista Parceiro", que utilizam a plataforma para exercer uma segunda atividade.
A flexibilidade de horários não é elemento, em si, descaracterizador da "não eventualidade" e tampouco incompatível com a regulação da atividade pelo Direito do Trabalho. Há diversos tipos de contratos de trabalho que permitem jornadas flexíveis e são essas passíveis de fiscalização e controle pelo empregador.
A não-eventualidade como pressuposto fático jurídico da relação de emprego emerge quando o trabalho é prestado em caráter permanente, independentemente de sua jornada ser rígida ou flexível.
A teoria mais tradicional acolhida pela doutrina e jurisprudência brasileiras é a que considera não eventual o trabalho que se insere nos "fins do empreendimento" econômico da empresa.
Nos termos do contrato social, defende a ré se dedicar a "intermediação de serviços entre usuários e motoristas parceiros. Não se trata de uma empresa de transporte", tendo declarado junto ao CNAE sua classificação sob o código 74.90-1-04: Atividades de intermediação e agenciamentos de serviçose negócios em geral, exceto imobiliários.
Dúvida não há de que a intermediação é instrumentalizada por uma plataforma tecnológica digital, como, aliás, está dito em seu contrato social, cláusula 4ª, alínea d (fl. 112 do PDF - ID. 7b623dd), o que já indica que este não é o serviço ofertado, mas o meio utilizado para ofertar.
Quais os serviços sob demanda intermediados pela UBER?
No item 1.16 do TERMO E CONDIÇÕES GERAIS DOS SERVIÇOS DE INTERMEDIAÇÃO DIGITAL descreve que os "serviços da Uber" são "intermediação sob demanda e serviços relacionados que permitem que prestadores(as) de transporte busquem, recebam e atendam solicitações de Serviços de Transporte feitas por Usuários(as) que procurarem tais Serviços de Transporte" e no item 1.13 esclarece que "serviços de transporte" significa "a prestação de serviços de Transporte de passageiros a usuários(as) por meio de serviços da Uber no Território pelo Cliente e seus motoristas usando os veículos".
A operacionalização é esclarecida no item 2.2 do TERMO E CONDIÇÕES GERAIS DOS SERVIÇOS DE INTERMEDIAÇÃO DIGITAL:
"2.2. Prestação de Serviços de Transporte. Quando o Aplicativo de Motorista estiver ativo, as solicitações de Usuários(as) para Serviços de Transporte poderão aparecer ao(à) Motorista por meio do Aplicativo de Motorista se o(a) Motorista estiver disponível e na região do(a) Usuário(a). Se o(a) Motorista aceitar a solicitação do(a) Usuário(a) para Serviços de Transporte, os Serviços da Uber disponibilizarão determinadas informações de Usuário(a) ao(à) Motorista por meio do aplicativo de Motorista, inclusive o primeiro nome do(a) Usuário(a) e o local de partida. Para aumentar o nível de satisfação do(a) Usuário(a) em relação ao aplicativo móvel Uber e em relação aos Serviços de Transporte do(a) Motorista, recomenda-se que o(a) Motorista espere ao menos 10 (dez) minutos para que o(a) Usuário(a) compareça ao local solicitado para a partida. O(A) motorista obterá destino do(a) Usuário(a), tanto pessoalmente como or meio do Aplicativo de Motorista, na hipótese do(a) Usuário(a) optar por inserir o destino no aplicativo móvel Uber. O(A) Cliente reconhece e concorda que uma vez que o(a) Motorista aceitar uma solicitação do(a) Usuário(a) para Serviços de Transporte, os Serviços da Uber poderão disponibilizar certas informações sobre o (a) Motorista ao Usuário(a), incluindo o primeiro nome e informações de contato do(a) Motorista, nome social do Cliente, fotografia e localização, marca, modelo e placas do Veículo do(a) Motorista. O(A) Cliente não contatará, e garante que os(as) Motoristas não contatarão, os(as) Usuários(as), nem usarão nenhum dado pessoal de nenhum(a) Usuário(a) por qualquer motivo que não seja a prestação de Serviços de Transporte. Entre a Uber e o(a) Cliente, o(a) Cliente reconhece e concorda que: (a) o(a) Cliente e seus(suas) Motoristas (quando aplicável) são os(as) únicos(as) responsáveis por determinar a forma mais eficaz, eficiente e segura para executar cada etapa dos Serviços de Transporte; e (b) exceto em relação aos Serviços da Uber ou quaisquer Dispositivos da Uber (se aplicável), o(a) Cliente deve fornecer todos os equipamentos, ferramentas e outros materiais necessários para a prestação dos Serviços de Transporte, sob sua conta e risco".
Em que pesem os cuidados na escolha das palavras e os esforços semânticos da UBER, que podem levar a incertezas aos intérpretes mais apressados, a plataforma é o instrumento para intermediar a atividade de motorista essencial aos serviços de transporte entregue ao "usuário passageiro" e, enquanto a UBER não dominar a tecnologia dos carros autônomos e sem motoristas como promete para futuro breve, o que oferta ao mercado é trabalho sob demanda via aplicativo, que se adequa perfeitamente ao conceito doutrinário de "work on-demand via apps":
"Work on-demand via apps", instead, is a form of work in which the execution of traditional working activities such as transport, cleaning and running errands, but also forms of clerical work, is channelled through apps managed by firms that also intervene in setting minimum quality standards of service and in the selection and management of the workforce (Aloisi, 2015; Dagnino, 2015; Greenhouse, 2015; Rogers, 2015b)."
(DE STEFANO, Valerio. The rise of the "just-in-time workforce": On-demand work, crowdwork and labour protection in the "gig-economy". Janeiro, 2016. Disponível em: < https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_protect/---protrav/---travail/documents/publication/wcms_443267.pdf>Acesso em 30.jun.2020.
"Trabalho sob demanda por aplicativos, por outro lado, é uma forma de trabalho em que a execução de atividades de trabalho tradicionais, como transporte, limpeza e execução de tarefas, mas também formas de trabalho administrativo, é canalizada por aplicativos gerenciados por empresas, as quais também intervêm em estabelecimento de padrões mínimos de qualidade de serviço e na seleção e gerenciamento da força de trabalho" (tradução livre e negritada)
E neste ponto, convém lembrar, que a "não mercantilização do trabalho" é princípio constitutivo e fundamental da OIT, sendo ilícito o marchandage em todo mundo civilizado. A exploração do trabalho humano deve estar intermediada pelo Direito para garantia do mínimo ético devido a pessoa humana que só tem a força de trabalho para ofertar no mercado.
A UBER DO BRASIL, UBER INTERNACIONAL E UBER INTERNACIONAL HOLDING B.V são empresas que reproduzem seu modelo de negócios pelo globo, são empresas globais. O Poder Judiciários de vários países já se debateu sobre o tema dos "fins do empreendimento econômico" da Uber sendo recorrente o reconhecimento de que é uma empresa de transporte individual de passageiros.
A decisão judicial do Central London Employment Tribunal é paradigmática. Faz uma minuciosa análise das provas produzidas, em especial do contrato entre a Uber e o passageiro (UK Rider Terms) e do contrato entre Uber e o motorista, no tópico "Terms between Uber and the driver", os quais são bastante similares ao TERMO E CONDIÇÕES GERAIS DOS SERVIÇOS DE INTERMEDIAÇÃO DIGITAL/ADENDO DO MOTORISTA, e conclui tanto pelo enquadramento dos motoristas na categoria de "Works", afastando a alegação de trabalhadores autônomos, quanto concorda com a conclusão alcançada por outra paradigmática decisão proferida pela Corte Distrital da Carolina do Norte no processo O'Connor-v-Uber Technologies Incque, no mesmo sentido, rejeita a afirmação da empresa de que é uma empresa de tecnologia e que seu negócio não é o transporte de passageiros. Merece destaque:
"Uber does not simply sell software: it sells rides. Uber is no more a "technology company" than Yellow Cab is a "technology company" because it uses CB rádios to dispatch taxi cabs." (case nos 2202550/2015, Mr Y Aslam; Mr . J Farrar v . Uber B .V; Uber London Ltd; Uber Britannia Ltd. - https://www.judiciary.uk/wp-content/uploads/2016/10/aslam-and-farrar-v-uber-reasons-20161028.pdf , acesso em 30.jun.2020, às 19:23)
"A Uber não vende apenas software: vende passeios. A Uber não é uma 'empresa de tecnologia' mais do que a Yellow Cab é uma 'empresa de tecnologia' porque usa rádios da CB para despachar táxis." (Tradução livre)
Nós, aqui, respeitosamente, também concordamos.
As decisões acima citadas não são isoladas. A comunidade jurídica internacional reiteradamente reconhece a Uber como empresa de transporte de passageiros assim como nega a condição de trabalhador autônomo, ora enquadrando-os como empregados, ora em categoria intermediária entre autônomo e empregado.
Cito, a título de exemplo, Decisão da Cour de Cassation Francesa - Arrêt n°1737 du 28 novembre 2018 (17-20 .079) - Cour de cassation - Chambre sociale (Demandeur(s): M . David Y ...; et autres; Défendeur(s): Mme Valérie E . . ., en qualité de mandataire liquidateur de la société Take Eat Easy; et autres).
Ainda, o Tribunal de Justiça Europeu, firmou recentemente o entendimento em caso envolvendo a empresa Uber de que:
"[...] um serviço de intermediação como o que está em causa no processo principal [Uber Systems Spain], que tem por objeto, por meio de uma aplicação para telefones inteligentes, estabelecer a ligação, mediante remuneração, entre motoristas não profissionais que utilizam o seu próprio veículo e pessoas que pretendam efetuar uma deslocação urbana, deve ser considerado indissociavelmente ligado a um serviço de transporte e, por conseguinte, abrangido pela qualificação de "serviço no domínio dos transportes", na aceção do art. 58, n. 1, TFUE" (TRIBUNAL DE JUSTIÇA EUROPEU. Acórdão do Tribunal de Justiça Europeu no processo C 434/15- ECLI:EU:C:2017:981).
O número de horas trabalhadas pela autora semanalmente era acompanhado pela ré, vez que todos os dados ficam armazenados no aplicativo, assim como o número de viagens concluídas, a taxa de aceitação e de cancelamento, como se observa no documento de ID. 948ab27.
O legislador não utilizou o termo continuidade e, portanto, mesmo descontínuo ou intermitente, se os serviços são necessários à atividade normal do tomador, o pressuposto da não-eventualidade se configura.
E, assim, o fato de Viviane poder vincular-se a outras plataformas para prestar idênticos serviços de transporte de passageiros não caracteriza o trabalho como eventual, o que, ademais, não foi comprovado nos autos. A autora informa, em depoimento, que: "que trabalhou exclusivamente na UBER", donde não se pode concluir que, efetivamente, a prestação de serviços para outros aplicativos ocorria ou comprometia a prestação pessoal e não eventual em favor da UBER.
Sendo a finalidade do empreendimento econômico o transporte veicular do usuário passageiro do ponto A ao ponto B, a atividade da Viviane, como motorista, é imprescindível para tais fins, o elemento fático jurídico da não eventualidade é característico da relação jurídica entre as partes.
Da onerosidade.
Seguramente, a relação jurídica entre autora e a ré não é gratuita, havendo intenção onerosa. A controvérsia é quanto ao enquadramento jurídico como salário, enquanto prestação devida e paga pelo empregador ao empregado em virtude do contrato de trabalho, como argumenta a autora, que narra receber por hora efetivamente trabalhada, ao passo que a defesa pretende convencer que "é a reclamante quem remunera a Reclamada pela utilização da plataforma" e que "O que sempre ocorreu foi apenas e simplesmente repasse de valores, situação que é distinta do pagamento de comissões e/ou salários".
Para definir salário, Olea integra a sua natureza alimentar, vinculando à atividade por conta alheia em atividade econômica produtiva, esclarecendo que, se o fruto do trabalho é entregue a outrem (empregador) esse deve retribuir garantindo-lhe os meios para subsistência que substituirão os frutos do trabalho. Diz:
"Do trabalho produtivo, por definição, resultam os frutos com que o trabalhador acorre à sua subsistência e à de sua família; no trabalho por conta alheia também por definição os frutos se atribuem imediatamente à pessoa diferente do trabalhador. Se o trabalho é, conjuntamente produtivo e por conta alheia, a atribuição dos frutos a pessoa diferente do trabalhador forçosamente há de estar acompanhada pela entrega do primeiro ao segundo de meios de subsistência, substitutivos dos frutos do trabalho." (OLEA, Manuel Alonso. Introdução ao Direito do Trabalho. Coimbra: Coimbra Ed, 1968, p. 42 apud Viana, Marcio Tulio. Salário. Curso de Direito do Trabalho: Estudos em memória de Célio Goyatá. 3 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: LTr, 1997, p. 20)
São caracteres do salário do empregado, definidos pela doutrina: a) essencialidade, sendo o contrato de trabalho oneroso, sem intenção de perceber remuneração não há contrato de trabalho; b) reciprocidade, já que se justifica o pagamento pelo tomador quando há atuação em seu favor; c) sucessividade, pois há uma relação jurídica que se prolonga no tempo; d) periodicidade, em intervalos curtos, dada a sucessividade, para que o trabalhador provenha a si e a sua família; e) determinação heterônoma. (Nascimento, Amauri Mascaro. O Salário. Apud: Barros, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 3ª ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2009, P. 751.)
Lembrando a definição de salário de Olea, trazida acima, destaco que: o autônomo não recebe salário do tomador de serviços porque o tomador de serviços não se apropria dos frutos do seu trabalho para colocá-los no mercado, mas já recebe desse o produto ou serviço em si, de interesse do tomador e objeto do contato. O autônomo, em contrapartida, recebe do tomador diretamente os frutos de seu trabalho.
Entendo que, do ponto de vista da onerosidade da relação entre prestador de serviços autônomo o que o distingue do trabalhador assalariado é o fato de que o fruto do trabalho do autônomo (a) não é entregue a outrem; (b) não é inserido na organização produtiva de outrem; (c) o preço do serviço é fixado livremente pelo autônomo.
A partir da análise do conceito de autônomo, indico que são caracteres do pagamento feito pelo tomador ao trabalhador em relação de trabalho autônomo: a) essencialidade, assim como no contrato de trabalho, sem pagamento não há relação de trabalho autônomo; b) reciprocidade, tal como no contrato de trabalho, somente se justifica o pagamento pelo tomador ao autônomo quando há atuação em seu favor; c) descontinuidade, pois não há, como regra, uma relação jurídica que se prolonga no tempo; d) aperiódico, pois só há pagamento quando há contratação do trabalho autônomo, ainda que possa ser parcelado o valor acordado pela peça ou obra; e) determinação negocial entre os contratantes, com influência da concorrência de outros autônomos que ofertam o mesmo produto ou serviço no mercado, sem interferência da lei ou de norma coletiva.
O pagamento pelo trabalho, por si só, não é elemento que distinga o trabalho assalariado das demais formas de relação de trabalho, como a prestação de trabalho autônomo, na qual também há pagamento. A partir, portanto, do conceito de salário e seus caracteres e da distinção traçada com relação ao pagamento feito pelo tomador ao trabalhador autônomo, passo a analisar os elementos da onerosidade presentes na relação entre as partes.
Os "termos financeiros" estão indicados no "ADENDO DO MOTORISTA" de onde destaco os seguintes trechos:
"4. Termos Financeiros
4.1. Cálculo do Preço e Pagamento ao(à) Cliente. O(A) Cliente tem o direito de cobrar um preço por cada etapa dos Serviços de Transporte encerrada, prestados aos(às) Usuárias(as) que forem identificados através dos Serviços da Uber ("Preço"), e tal Preço é calculado com base em um preço básico acrescido da distância (conforme determinado pela Uber com o uso de serviços baseados em localização ativados por meio do Dispositivo) e/ou quantidade de tempo, conforme detalhado em www.uber.com/cities para o Território aplicável ("Cálculo do Preço"). O(A) Cliente também tem o direito de cobrar do(a) Usuário por quaisquer Pedágios, impostos ou taxas incorridas durante a prestação de Serviços de Transporte, quando aplicável. O(A) Cliente: (i) nomeia a Uber como agente limitado de cobrança de pagamento do(a) Cliente unicamente com a finalidade de aceitar o Preço, Pedágios aplicáveis e, dependendo da região e/ou se solicitado pelo(a) Cliente, impostos e tacas do(a) Usuário em nome do(a) Cliente através da funcionalidade de processamento de pagamentos facilitada pelos Serviços da Uber; e (ii) concorda que o pagamento feito pelo(a) Usuária para a Uber será considerado como um pagamento feito diretamente pelo(a) Usuário(a) ao(à) Cliente. Além disso, as partes reconhecem e concordam que entre o(a) Cliente e a Uber o preço é um valor recomendado e o objetivo principal do Preço pré-estabelecido é servir como um valor padrão caso o(a) Cliente não negocie um valor diferente. O(A) Cliente terá sempre o direito de: (i) cobrar um Preço inferior ao Preço pré-estabelecido; ou (ii) negociar, a pedido do(a) Cliente, um Preço que seja mais baixo do que o Preço pré-estabelecido (cada um dos caos (i) e (ii) supra descritos, um "Preço Negociado"). A Uber considerará todas as solicitações do(a) Cliente de boa-fé. A Uber concorda em transferir para o(a) Cliente, em uma periocidade pelo menos semanal: (a) o Preço deduzido da Taxa de Serviço aplicável; (b) os Pedágios; (c) dependendo da região, certos impostos e tacas suplementares. Na hipótese do(a) Cliente ter algum acordo em separado, outros montantes poderão ser deduzidos do Preço antes da remessa ao(à) Cliente (por exemplo, pagamentos de financiamento de veículos, pagamento de locação; tarifas de uso de dispositivos móveis, etc.), a ordem de tais deduções do Preço será determinada exclusivamente pela Uber.
4.3. Pagamentos. A Taxa de Serviço que o(a) Cliente deve à Uber pelo Serviço de Transporte prestado pelo(a) Cliente e seus(suas) Motoristas, e quaisquer outros valores devidos à Uber (por ex. reembolso por serviços optativos), deverão ser pagas à Uber mediante compensação e dedução pela própria Uber dos pagamentos realizados via cartão de crédito pelos Serviços de Transportes realizados pelo(a) Cliente ou seus(suas) Motoristas (conforme aplicável). (...)
4.4. Alterações no Cálculo do Preço. A Uber reserva o direito de alterar o cálculo do preço a qualquer momento, a critério da Uber com base em fatores do mercado local e a Uber enviará um aviso ao(à) Cliente caso tal alteração possa resultar em uma mudança no Preço recomendado. O uso continuado dos Serviços da Uber depois de qualquer mudança no Cálculo do Preço constituirá a concordância do(a) Cliente em relação a mencionada alteração.
4.5. Ajuste de Preço. A Uber reserva o direito de: (i) ajustar o Preço para uma situação específica dos Serviços de Transporte (por exemplo, Motorista pegou uma rota ineficiente, o(a) Motorista não conseguiu concluir corretamente uma etapa específica dos Serviços de Transporte no Aplicativo de Motorista, erro técnico nos Serviços da Uber, etc); ou (ii) cancelar o Preço para uma etapa específica dos Serviços de Transporte (por exemplo, um(a) Usuário(a) foi cobrado(a) por Serviços de Transportes que não foram prestados em caso de uma queixa do(a) Usuário(a), fraude, etc.). A decisão Uber de reduzir ou cancelar o Preço qualquer que seja deve ser exercida de forma razoável.
4.6. Taxa de Serviço. Em contraprestação pela prestação dos Serviços da Uber pela Uber, o(a) Cliente concorda em pagar à Uber uma Taxa de Serviço com base em uma transação de Serviços de Transporte calculada como uma porcentagem do Preço, independentemente de qualquer Preço negociado que será comunicada ao(à) Cliente por e-mail ou outra forma oportunamente disponibilizada eletronicamente pela Uber para o Território aplicável ("Taxa de Serviço"). A menos que as regulamentações aplicáveis ao Território do(a) Cliente exijam o contrário, os impostos serão calculados e cobrados sobre o Preço e a Uber calculará a Taxa de Serviços com base no Preço, incluindo os respectivos tributos. A Uber reserva o direito de ajustar a Taxa de Serviços (tanto o percentual aplicável como a forma pela qual a Taxa de Serviço é calculada) a qualquer momento, a critério exclusivo da Uber com base nas condições e fatores do mercado local; a Uber fornecerá um aviso ao(à) Cliente na ocorrência de tal mudança. O uso continuado dos Serviços da Uber após qualquer mudança no cálculo da Taxa de Serviços constituirá a concordância por parte do(a) Cliente em relação a tal mudança. Para que não reste dúvida, tal como previsto na cláusula 4.1, sem prejuízo do fato de que a Uber receberá o Preço, a Uber fará jus apenas à Taxa de Serviço (na forma ajustada, se aplicável)".
O preço do transporte do "usuário passageiro" é definido pela UBER, calculado com base em um preço básico acrescido da distância e/ou quantidade de tempo, a chamada "tarifa dinâmica" e poderá ser alterado, a critério exclusivo da UBER, a qualquer momento, sendo pago pelo "usuário passageiro" que retira uma porcentagem do preço, a qual também poderá ser ajustada - tanto em seu percentual quando a forma de cálculo - a critério exclusivo a UBER e a qualquer momento.
Ainda que o motorista possa negociar o preço para valor inferior ao fixado pela UBER, na excepcionalidade de haver pagamento em dinheiro - se e quando disponibilizada essa modalidade pela UBER, a taxa de serviço será calculada com base no preço fixado pela UBER.
Essa "possibilidade negocial" encerra uma falácia em si que pressupõe um prejuízo exclusivamente ao motorista.
Ademais, há de se ter em conta que, se autorizado o pagamento em dinheiro, o motorista não fará o "pagamento" pela intermediação digital. É a própria UBER que, na medida em que já se apropriou da totalidade do fruto do trabalho prestado pelo motorista em outros serviços, fará a retenção da "taxa de serviços", valendo-se de suas próprias razões.
Qual o contratado que tem acesso ao patrimônio do contratante/prestador para destacar desse patrimônio o valor que entende devido, senão a UBER?
Essa "compensação" somente é possível porque a integralidade do fruto do trabalho do motorista é entregue a UBER, o que, aliado a fixação do preço pelo tomador (e não pelo prestador autônomo), indica que a onerosidade característica da prestação de serviços autônomo não está presente.
Sendo o preço calculado e fixado pela UBER sem qualquer interferência da Viviane, a motorista autora, não se vislumbra qualquer possibilidade de concorrência entre os motoristas que ofertam o mesmo produto no mercado a partir do preço e tampouco de eventual diferencial de qualidade dos serviços, pois a escolha do motorista que irá atender ao cliente é feita, como já visto, por critérios de geolocalização, de forma que não é possível que o motorista fidelize o passageiro.
A competição de que se tem notícia nos autos do processo nº 0101291-19.2018.5.01.0015, ora invocado como fundamento decorrente do conhecimento do magistrado por julgar processo similar, é a que a UBER estimula entre os motoristas para que trabalhem mais e mais, evidenciada por mensagens tais como "você cancelou mais corridas que a maioria dos parceiros nos últimos 7 dias. Complete mais viagens para ganhar mais! Veja seus e-mails com dicas" (ID. 8b9b923 - Pág. 3 processo 0101291-19.2018.5.01.0015) ao mesmo tempo em que impede que os motoristas apresentem preços e condições diferentes de serviços e fidelize diretamente o cliente, pois preço e condições são rigidamente fixadas pela ré.
Por outro lado, a prova daqueles autos ainda evidencia um ajuste de preço entre UBER e "usuário passageiro",a critério exclusivo da UBER sem oitiva ou anuência da motorista Erica, que resultou em expressivo prejuízo, conforme demonstram os documentos de ID. 948ab27 - Pág. 2 e ID. 948ab27 - Pág. 67 (ambos do processo nº 0101291-19.2018.5.01.0015). Importa esclarecer a situação comprovada no aludido processo:
Erica conduziu um passageiro da Rua Xavier da Silveira para a Ladeira da Glória, em viagem com duração de 18min14s percorrendo 11,33km, tendo sido fixado o preço de R$ 22,86, acrescido do preço dinâmico de R$ 4,57. O passageiro fez uma reclamação, acolhida pela UBER, que reduziu, a seu exclusivo critério R$ 15,22 do preço do transporte e, por fim, cobrou a taxa UBER sobre o valor do preço acrescido do preço dinâmicono importe de R$ 6,86, restando para a Erica, pelo trabalho, R$ 5,35.
Erica não se apropriou dos frutos de seu trabalho, que é rotineiramente entregue a UBER; não teve oportunidade de negociar o preço do trabalho com o passageiro e tampouco teve a oportunidade de gerir a insatisfação.
Aquele que recebeu os frutos do trabalho da Erica foi a UBER, que deu razão ao passageiro e definiu a prestação do trabalho como ruim e, por fim, quem decidiu unilateralmente a remuneração da trabalhadora.
E como bem se sabe, tal conduta comprovada naqueles autos é comumente adotada pela ré, o que permite adotar como fundamento nos presentes autos, com base no artigo 375 do CPC que autoriza a aplicação das "regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece".
É nesse sentido que se posiciona a pesquisadora Ana Carolina Reis Paes Leme, em livro fruto de dissertação de mestrado junto a UFMG:
"a Uber consegue ser remunerada por todos os componentes da equação do seu sistema produtivo: é paga pelo cliente e pelo motorista. Ambos e a própria sociedade exercem trabalho gratuito à Uber. O cliente, porque desempenha parcela importante do poder diretivo, ao avaliar o serviço e o motorista; avaliação esta que resulta em advertências, suspensões e até extinção do contrato de trabalho digital por iniciativa unilateral da Uber, que impede que o trabalhador faça login no aplicativo. O motorista, pelo seu tempo à disposição e por atrair novos trabalhadores para ingressar no leilão de oferta de serviços de transporte pelo menor preço. E a comunidade, por fazer pressão política para barrar qualquer esforço regulatório do Estado" (LEME, Ana Carolina Reis Paes. Da Máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça dos motoristas da Uber pela via dos Direitos. São Paulo: Ltr, 2019. p. 88).
A partir dessa passagem da história da motorista Erica com a Uber, é possível inferir que não era a motorista quem fixava ou geria os frutos do trabalho prestado. Por outro lado, evidencia-se o óbvio: é a UBER quem faz a gestão das reclamações dos passageiros, inclusive reclamação sobre o próprio motorista, exercendo unilateralmente seu poder diretivo e sancionatório de acordo com sua exclusiva deliberação ou mediante critérios inseridos nos comandos automatizados.
Constato que não está presente a determinação negocial entre o motorista e o passageiro, prestador de serviços e usuário. Constato, também, que a definição e manipulação do preço exclusivamente pela UBER impede qualquer influência sobre o preço que pudesse advir da concorrência de outros motoristas que ofertam o mesmo produto ou serviço no mercado, como é caractere do pagamento ao prestador de serviços autônomo pelo tomador.
Não há negociação entre motoristas e a UBER, que fixa unilateralmente o preço do transporte e a porcentagem desse preço que lhe cabe.
Por outro lado, as características do salário estão presentes: a) essencialidade, sendo o contrato de trabalho oneroso, sem salário não há contrato de trabalho - o motorista é remunerado por produção; b) reciprocidade, já que se justifica o pagamento pelo tomador quando há atuação em seu favor; c) sucessividade, pois há uma relação jurídica que se prolonga no tempo; d) periodicidade, em intervalos curtos - semanais, dada a sucessividade, para que o trabalhador provenha a si e a sua família; e) determinação heterônoma, que, no caso do Uber, deixa de ser heterônoma e passa a ser unilateral.
Quanto à forma de pagamento, observa-se a importância desse elemento para exercer controle, direção, gestão sobre o trabalhador, influenciando sua suposta gestão sobre seu tempo e capacidade para o trabalho. Nesse sentido, importantes considerações são trazidas pela pesquisadora Viviane Vidigal:
O processo é combinado com o sistema de pagamento por peça. Uma tentativa de inculcar nos trabalhadores os imperativos de gestão. O controle vai além da supervisão dos trabalhadores, o controle está relacionado à superação de resistência do trabalhador. (...)Isso gera ar de falsa de liberdade, de falsa autonomia, ou melhor de liberdade controlada, necessários nos dias atuais. Na passagem da sociedade da disciplina de Foucault para a sociedade do controle de Deleuze, foi preciso criar um ambiente sedutor de liberdade, um meio positivo (CHAVES JUNIOR, 2017). Byung-Chul Han, ressalta que "psicopolítica" neoliberal precisou descobrir formas cada vez mais refinadas de exploração.
A remuneração desses motoristas reedita formas antigas de trabalho. No "O Capital" (Marx, 1982, Livro I, tomo II) pode-se encontrar pistas preciosas para entender tanto a dialética do trabalho, quanto da problematização do salário por peça, a remuneração do trabalhador depende não de sua jornada, mas de sua produção. No século XIX, Marx já assinalava a tendência a uma opacidade ainda maior das relações entre capital e trabalho através desse tipo de pagamento. A passagem do salário por tempo para o salário por peça materializa uma transferência do controle sobre o trabalho da gerência do tempo e produtividade para o próprio trabalhador. Marx explica que ao remunerar não pelo tempo, mas pela quantidade produzida, favorece um aumento tanto da extensão do tempo de trabalho como de sua intensidade:
[...] Dado o salário por peça, é naturalmente do interesse pessoal do trabalhador aplicar sua força de trabalho o mais intensamente possível, o que facilita ao capitalista elevar o grau normal de intensidade. Do mesmo modo, é interesse pessoal do trabalhador prolongar a jornada de trabalho, pois com isso sobe seu salário diário ou semanal. (MARX, p. 141).
A variação na remuneração é então de inteira responsabilidade do trabalhador, quanto melhor seu desempenho e quanto mais trabalhar, maior é a remuneração. Tal desempenho envolve suas capacidades e a transferência do controle sobre a produção, ou seja, a colaboração do trabalhador com o aumento da produtividade. Essa inversão no controle é vista como liberdade para o trabalhador:
Com salário por tempo prevalece com poucas exceções salário igual para as mesmas funções, enquanto com salário por peça, ainda que o preço do tempo de trabalho seja medido por determinado quantum de produtos, o salário diário ou semanal, ao contrário, varia com a diferenciação individual dos trabalhadores, dos quais um fornece apenas o mínimo do produto num período dado, o outro a média e o terceiro mais do que a média. Quanto à receita real aparecem aqui, portanto, grandes diferenças conforme a habilidade, força, energia, persistência etc. dos trabalhadores individuais. (...) a maior liberdade que o salário por peça oferece à individualidade tende a desenvolver, por um lado, a individualidade, e com ela o sentimento de liberdade, a independência e autocontrole dos trabalhadores;(Marx, p. 142)
(CASTRO, Viviane Vidigal) As ilusões da uberização do trabalho: um estudo à luz da experiência de motoristas uber.. In: 44º Encontro Anual da ANPOCS, 2020. Anais do 44º Encontro Anual da ANPOCS.)
Concluo, portanto, que a força de trabalho da Viviane e o produto desse trabalho não permaneciam em seu domínio, sendo entregue à UBER. O correto nome jurídico para o pagamento feito pela Uber ao motorista é salário por obra ou serviço, que tal como as comissões, são modalidade de salário variável constituído por um percentual sobre o valor do resultado da atividade executada.
Da subordinação jurídica subjetiva clássica por meios telemáticos e informatizados de comando: subordinação algorítmica.
A subordinação jurídica é o coração do contrato de trabalho, elemento fático jurídico sem o qual o vínculo de emprego não sobrevive.
A trabalhadora Viviane sente que a UBER observava a forma como era realizado o seu trabalho como motorista; que a incentivava a permanecer conectada ao aplicativo; controlava o número de corridas canceladas; que era advertida caso não cumprisse a risca as orientações da empresa e, por fim, poderia ser dispensada, como o foi, em razão da elevada taxa de cancelamento e do questionamento quanto ao ajuste de preço de uma corrida.
Para a UBER, os motoristas são prestadores autônomos de serviços de transporte que contratam a intermediação digital que os conecta ao usuário passageiro, sendo que todas as orientações contidas no TERMO E CONDIÇÕES GERAIS DOS SERVIÇOS DE INTERMEDIAÇÃO DIGITAL e ADENDO DO MOTORISTA visam a garantir segurança e satisfação dos clientes - motoristas e passageiros - com os serviços por si prestados.
A controvérsia está assim posta: o trabalho indubitavelmente realizado pela Viviane seguia aos comandos tais da UBER - a plataforma que detêm o algoritmo - capaz de caracterizar a subordinação jurídica ou era livremente realizados pela Viviane, que se autogeria, conduzindo uma atividade de natureza econômica própria?
A subordinação, como conceito estruturante do vínculo de emprego, por ser de natureza instrumental, traz consigo a maleabilidade da vida e acompanha a construção e a evolução da sociedade, observando-se tendências expansionistas e reducionistas ao longo do tempo, capitaneados pela doutrina e pela jurisprudência e, então, albergado pela lei.
A concepção clássica de subordinação compreendida como feixe e intensidade de ordens dadas ao trabalhador orientadoras da forma de realização do trabalho atende, inicialmente, aos operários, que são os primeiros trabalhadores protegidos pelo Direito do Trabalho, tendo ocorrido, progressivamente, uma ampliação do conceito para incluir os trabalhadores em domicílio - inicialmente pela jurisprudência e então, pela lei -, os trabalhadores intelectuais e os altos empregados.
Explica Lorena Porto:
"No processo de ampliação, destaca-se a abrangência de determinadas categorias de obreiros, que antes eram excluídas do âmbito do Direito do Trabalho ou cuja inclusão era bastante controvertida (como os trabalhadores em domicílio, os altos empregados e os trabalhadores intelectuais). Nesse contexto, assumiu grande importância a formulação de novos conceitos e fortalecimento de conceitos antigos, que têm em comum o objetivo de ampliar o campo de abrangências das normas justrabalhistas. Refiro-me à subordinação objetiva, à dependência econômica, à potencialidade do poder empregatício, à assunção dos riscos do empreendimento, ao fortalecimento do princípio da primazia da realidade, entre outros.
A jurisprudência, estimulada pela doutrina, passa a aplicar esses critérios, notadamente por meio da técnica do 'conjunto de indícios' para a identificação da subordinação no caso concreto, o que contribuiu notavelmente para a ampliação do conceito. Em alguns países, o legislador acabou intervindo e contribuiu para essa expansão." (Porto, Lorena Vasconcelos. A subordinação no contrato de trabalho: uma releitura necessária. São Paulo: LTr, 2009, p. 48)
Ao conceito clássico de subordinação agrega-se a dimensão da subordinação objetiva, caracterizada pela realização de funções em adequação do trabalhador aos objetivos empresarias e a subordinação estrutural, indicada pela inserção do trabalhador no ambiente, estrutura, cultura empresariais, cumprindo o trabalhador um papel na empresa e partindo-se da ideia de que é estrutural ao capitalismo da organização da empresa, na medida em que o trabalhador está integrado à organização produtiva alheia por não possuir uma organização produtiva própria.
A lei 12.551/2011 vem como contribuição do legislador pátrio à expansão do conceito de subordinação para equipar "os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio."
O uso de tecnologia que permite a comunicação à distância entre serviços de informática por meio de redes de telecomunicações propicia tanto o envio das ordens ao trabalhador orientadoras da forma de realização do trabalho quanto a fiscalização do local e da forma do desenvolvimento da atividade, mediante o uso de, por exemplo, ferramentas de geolocalização, capazes de precisar a localização e velocidade de cada veículo da frota.
Permitem, também, registrar, armazenar e tratar todos os dados da prestação de serviços captados pelo aplicativo da plataforma, com uma capacidade de memória, controle e precisão que nenhum chefe pessoalmente é capaz de ter e sem a necessidade do envio de qualquer relatório. E mais, esse grande conjunto de dados tratados sobre os motoristas, passageiros, trajetos, horários, preços, aceitações, cancelamentos, acessos, avaliações, não só propicia ampla exploração econômica dos próprios dados captados e tratados, como permite disparar comunicações, comandos e condutas de parte da ré, em grande parte automatizada nos comandos algorítmicos, como também mediante a intervenção humana, que consubstanciam seu alargado poder de gerenciamento não só da atividade de cada motorista, como de toda a atividade de transporte por ela promovida.
Mediante a associação dessa capacidade altamente controladora dos meios digitais, com rígidas regras que predeterminam toda a estrutura da prestação laboral e especialmente com estratégias de indução de conduta mediante o uso simultâneo de prêmios (majorações de preço, nudges, mensagens de incentivo, fomento de expectativas de ganho) e sanções (mensagens de admoestação, manipulação do medo mediante ameaças veladas ou concretização de suspensões, restrições ou mesmo cancelamento do credenciamento e outras sanções difusas) - a conhecida metodologia carrots and sticks- permite-se obter um grau de fiscalização, controle e comando da prestação de serviços, tão ou mais intenso e eficiente que aquele exercido de modo presencial. É esse poder controlador, fiscalizador e de comando que permite à ré exercer uma atividade contando com prestação de trabalho humano altamente estabilizada e controlada, mesmo em uma organização baseada no trabalho sob demanda em regime de crowdworking (contratação individualizada de trabalhos de uma grande massa de trabalhadores disponíveis).
Desta forma, a ausência de um chefe com olhos postos sobre o trabalhador da fábrica a lhe dar ordens e a fiscalizar o modo de realizar as atividades determinadas pode ser substituído por meios telemáticos de controle sem prejuízo ao conceito de subordinação. Ao revés de mitigado, aqui, o poder de controle, fiscalização e comando é, no essencial, potencializado exponencialmente.
Neste sentido, afirma Ana Carolina Paes Leme que "a Uber faz controle por programação neo-fordista, trocando a máquina pela nuvem". Os motoristas, portanto, fazem "parte da engrenagem, comandados por uma espécie de esteira digital"(LEME, Ana Carolina Reis Paes. Da Máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça dos motoristas da Uber pela via dos Direitos. São Paulo: Ltr, 2019. p. 90).
No que tange à intensidade dessas ordens é que a doutrina contribui agregando o conceito de controle por programação, explicado pelo Prof. Rodrigo de Lacerda Carelli apoiado na obra de Alain Supiot:
"Enquanto o taylorismo/fordismo centrava-se na subordinação do trabalhador a uma racionalidade que lhe restava exterior, agora o foco está na sua programação, pela apresentação de metas, regras e medida dos resultados do trabalho por meio de indicadores estatísticos. É importante, no entanto, que o sujeito se aproprie desta avaliação para reagir positivamente à lacuna que ela revela entre sua performance e seus objetivos. (SUPIOT, Alain. La gouvernance par lesnombres. Paris: Fayard, 2015, p. 257)
(...)
No novo regime, a organização do trabalho - e consequentemente o seu controle - apresenta-se de forma diferente: é a programação por comandos. Restitui-se ao trabalhador certa esfera de autonomia na realização da prestação. (Ob. Cit, p. 354.)
Esta é a direção por objetivos. A partir da programação, da estipulação de regras e comandos preordenados e mutáveis pelo seu programador, ao trabalhador é incumbida a capacidade de reagir em tempo real aos sinais que lhe são emitidos para realizar os objetivos assinalados pelo programa. (Ob. Cit., p. 355.) Os trabalhadores, nesse novo modelo, devem estar mobilizados e disponíveis à realização dos objetivos que lhe são consignados.
(...)
Neste ponto encontramos uma contradição própria do novo modelo: ao mesmo tempo em que acena para a entrega de parcela de autonomia ao trabalhador, essa liberdade é impedida pela programação, pela só e mera existência do algoritmo.
(...)
Supiot nos traz interessante caso julgado pela Cour de cassation francesa que demonstra como isso se dá na gestão por programação. Pela participação em um reality show televisivo que se chamava "Île de la tentation", no qual casais passavam doze dias em uma ilha participando de atividades recreativas com pessoas solteiras, passando por testes de "fidelidade", cada pessoa recebeu 1500 euros. A questão chegou à Justiça francesa porque vários participantes demandaram à Justiça o reconhecimento de vínculo empregatício com a produtora do programa. A Corte de Cassação por fim reconheceu a condição de empregados, porque estes "deveriam seguir as regras do programa definidas unilateralmente pelo produtor, que eles [os trabalhadores] eram orientados a partir da análise de sua conduta, (...) e estipulava-se que toda infração às obrigações contratuais poderia ser sancionada com a sua dispensa". A corte considerou que "a prestação dos participantes à emissão televisiva tinha por finalidade a produção de um bem com valor econômico." (SUPIOT, Alain. Ob. Cit, p. 353-354) Conforme Supiot, a grande novidade do julgado foi o reconhecimento das mutações (ou deslocamento de sentido) que a direção por objetivos imprime à subordinação, troncando-se a ficção do trabalho-mercadoria pela noção de liberdade programada. Assim, a autonomia concedida é uma "autonomia na subordinação". Os trabalhadores não devem seguir mais ordens, mas sim a "regras do programa". Uma vez programados, na prática os trabalhadores não agem livremente, mas exprimem "reações esperadas". (grifei) (Carelli, Rodrigo de Lacerda. O caso Uber e o controle por programação: de carona para o Século XIX In: Tecnologias Disruptivas e a exploração do trabalho humano. Ana Carolina Paes Leme, Bruno Alves Rodrigues e José Eduardo de Resende Chaves Junior. São Paulo, LTR, p. 130-146).
Em resumo, o que Uber faz é codificar o comportamento dos motoristas, por meio da programação do seu algoritmo, onde insere suas estratégias de gestão, sendo que referida programação fica armazenada em seu código-fonte, sendo alimentada pelo enorme volume de dados tratados, captados a cada instante da prestação de serviços. Realiza, pois, controle, fiscalização e comando por programação neo-fordista.
O conceito de subordinação, assim, torna-se mais sofisticado mas não deixa de ser a forma pela qual se dá a organização do processo produtivo:
"O comando, o controle, a supervisão e a vigilância se condensaram e ficaram ocultos dentro da própria plataforma de prestação dos serviços. Nesse prisma, a ausência de comandos pessoais exteriorizados pela figura de um preposto gera a falsa impressão de que o trabalhador goza de plena autonomia e liberdade de "trabalhar quando e como quiser". No entanto, muito pelo contrário, a autonomia do motorista está condicionada aos parâmetros previamente especificados e inseridos na plataforma eletrônica. A contradição é facilmente identificada: ao mesmo tempo em que sinaliza a entrega de parcela de autonomia ao trabalhador, essa liberdade é impedida pela própria programação, que obsta a tomada de decisão pelo trabalhador. O algoritmo é o empregador dentro do aplicativo, no smartphone plugado no painel do condutor, sinalizando o tempo todo para que ele siga os seus comandos." (LEME, Ana Carolina Reis Paes. Da Máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça dos motoristas da Uber pela via dos Direitos. São Paulo: Ltr, 2019. p. 97).
Assim, qualquer trabalhador que está integrado à organização produtiva de outrem - que a detêm e organiza, por não ser possuidor de sua própria organização produtiva - recebendo ordens ou programações, ainda que por meio telemático, é objeto de proteção pelo Direito do Trabalho na medida em que é estrutural ao próprio capitalismo a organização da empresa.
A análise do TERMO E CONDIÇÕES GERAIS DOS SERVIÇOS DE INTERMEDIAÇÃO DIGITAL e ADENDO DE MOTORISTA permite extrair alguns dos programas que devem ser seguidos pelos motoristas, como a Viviane, sob pena de serem suspensos ou bloqueados em definitivo.
"2.2. Prestação de Serviços de Transporte. Quando o Aplicativo de Motorista estiver ativo, as solicitações de Usuários(as) para Serviços de Transporte poderão aparecer ao(à) Motorista por meio do Aplicativo de Motorista se o(a) Motorista estiver disponível e na região do(a) Usuário(a). Se o(a) Motorista aceitar a solicitação do(a) Usuário(a) para Serviços de Transporte, os Serviços da Uber disponibilizarão determinadas informações de Usuário(a) ao(à) Motorista por meio do aplicativo de Motorista, inclusive o primeiro nome do(a) Usuário(a) e o local de partida. Para aumentar o nível de satisfação do(a) Usuário(a) em relação ao aplicativo móvel Uber e em relação aos Serviços de Transporte do(a) Motorista, recomenda-se que o(a) Motorista espere ao menos 10 (dez) minutos para que o(a) Usuário(a) compareça ao local solicitado para a partida. O(A) motorista obterá destino do(a) Usuário(a), tanto pessoalmente como por meio do Aplicativo de Motorista, na hipótese do(a) Usuário(a) optar por inserir o destino no aplicativo móvel Uber. (...)".
"2.4. Relacionamento do(a) Cliente com a Uber. O(A) Cliente reconhece e concorda que a disponibilização do Aplicativo de Motorista e dos Serviços da Uber ao(à) Cliente pela Uber cria uma relação jurídica e comercial direta entre a Uber e o(a) Cliente. A Uber não administra, nem controla, nem será considerada administradora ou controladora do(a) Cliente ou seus(suas) Motoristas (quando aplicável) de forma geral ou em relação ao cumprimento dos termos deste Contrato especificamente, incluindo o que diz respeito à operação do negócio do(a) Cliente, à prestação de Serviços de Transporte, os atos ou omissões do(as) Motoristas, ou a operação e manutenção de qualquer Veículo. O(A) Cliente e seus(suas) Motoristas detêm o direito exclusivo de determinar quando e por quanto tempo cada um(a) deles(as) utilizará o Aplicativo de Motorista ou Serviços da Uber. O(A) Cliente e seus(suas) Motoristas manterão a faculdade, através do Aplicativo de Motorista, de aceitar, recusar ou ignorar a solicitação de um(a) Usuário para Serviços de Transporte através dos Serviços da Uber, ou cancelar um pedido aceito para Serviços de Transporte, através do Aplicativo de Motorista, sujeito às políticas de cancelamento da Uber vigentes na ocasião. O(A) Cliente não irá, e assegurará que seus(suas) Motoristas (quando aplicável) não irão: (a) exibir nomes, logotipos ou cores da Uber ou de quaisquer de suas Afiliadas em nenhum veículo(s); (b) usar um uniforme ou qualquer outra peça de vestuário que apresente os nomes, logotipos o cores da Uber ou de qualquer uma de suas Afiliadas. O supramencionado não se aplicára na hipótese do(a) Cliente e a Uber terem acordado de outra forma ou se assim for exigido por lei. O(A) Cliente reconhece e concorda que tem total liberdade para conduzir seu negócio independentemente e orientar seus (suas) Motoristas (quando aplicável), a seu critério, inclusive em relação à possibilidade de prestar serviços a qualquer momento para quaiquer terceiros(as) separadamente e aparte dos Serviços de Transporte. Para fins de clareza, o(a) Cliente entende que tem o pleno direito de prestar serviços de transporte aos seus atuais consumidores e usar outros serviços de aplicativos de sofware, além dos serviços da Uber. A Uber reserva o direito de, a qualquer momento, a seu exclusivo critério, desativar ou restringir o(a) Cliente ou qualquer Motorista de acessar ou utilizar o Aplicativo de Motorista ou os Serviços da Uber caso ocorra uma violação do presente Contrato, violação do Adendo de Motorista, difamação da Uber ou qualquer uma de suas Afiliadas por parte do(a) Cliente ou de qualquer Motorista (quando aplicável), qualquer ato ou omissão do(a) Cliente ou de qualquer Motorista (quando aplicável) que cause dano à marca, reputação ou negócios da Uber ou suas Afiliadas, conforme determinado pela Uber a seu exclusivo critério. A Uber também reserva o direito de desativar ou ainda restringir o(a) Cliente ou qualquer Motorista (quando aplicável) de acessar ou utilizar o Aplicativo de Motorista ou os Serviços da Uber, por qualquer outra razão, a critério exclusivo e razoável da Uber".
O motorista deve se apresentar em um local determinado pela UBER para atender a um passageiro que não conhece e cujo nome apenas será disponibilizado após aceitar a corrida, devendo aguardar 10 minutos pelo passageiro. O motorista não pode utilizar qualquer indumentária que faça referência à marca UBER. O motorista deve se portar bem, ser profissional e cortês:
"3. Motoristas e Veículos
3.1. Requisitos do(a) Motorista. O(A) Cliente reconhece e concorda que cada Motorista sempre deverá: (a) possuir e manter (i) uma carteira de motorista válida com o nível adequado de certificação para operar o Veículo designado para tal Motorista, e (ii) todas as licenças, permissões, aprovações e autorizações aplicáveis ao(à) Cliente e/ou Motorista requeridas para a prestação dos Serviços de Transporte de passageiros a terceiros(as) no Território; (b) possuir um nível de formação, treinamento e conhecimento apropriado e atualizado para prestar Serviços de Transporte de forma profissional com a devida competência, zelo e diligência; e (c) manter padrões elevados de profissionalismo, serviço e cortesia. O(A) Cliente reconhece e concorda que cada Motorista poderá ser submetido(a) a determinadas verificações de segurança e histórico de direção, de tempos em tempos, para que esse(a) Motorista esteja elegível a prestar, e permaneça elegível a prestar, Serviço de Transporte. O(A) Cliente reconhece e concorda que a Uber reserva o direito de, a qualquer momento e a seu exclusivo critério, desativar ou ainda restringir um(a) Motorista de acessar ou utilizar o Aplicativo de Motorista ou os Serviços da Uber caso o(a) Cliente ou referido Motorista deixe de cumprir os requisitos fixados no presente Contrato ou no Adendo de Motorista".
O motorista pode até cancelar uma corrida, desde que esteja disposto a se sujeitar às políticas de cancelamento estabelecidas pela UBER a seu critério exclusivo.
No entanto, como adverte a testemunha ouvida a rogo da UBER, nos autos do processo nº 0101291-19.2018.5.01.005, não é aconselhável que o motorista faça sucessivos cancelamentos porque isso compromete o sistema, sob pena de sofrer uma desativação temporária: "que o motorista pode cancelar viagens já aceitas; que a plataforma existe para que seja o mais eficiente possível, se houver cancelamento de viagens de forma repetida e extrema (num curto período de tempo, de minutos, cerca de 10 cancelamentos), a plataforma entende que o motorista pode ter se enganado, e deixa ele "off line" (mediante sugestão, perguntando ao motorista se não prefere permanecer "off line"), o fazendo para preservar a saúde da "plataforma";".
Para que a "plataforma seja o mais eficiente possível"é recomendável evitar cancelamentos, o que justifica o envio de mensagens alertando sobre a taxa de cancelamento (ID. e75ebd2 - Pág. 1 dos autos nº 0101291-19.2018.5.01.0015), com a advertência de que isso poderia conduzir à desativação, como propõe a regra acima citada.
A propósito, a defesa admite que importa um reduzido número de cancelamentos para a eficiência da plataforma: "o bom funcionamento da plataforma depende de um encontro efetivo entre consumo e demanda. É com base neste equilíbrio que um motorista parceiro poderá encontrar um usuário no menor tempo possível, gerando, neste ciclo, satisfação a ambos".
E esclarece que: "É justamente em razão deste contexto que sucessivos cancelamentos geram a sobrecarga do sistema: se uma determinada viagem foi sugerida àquele parceiro, é porque ele tinha a melhor localização naquele momento; cancelando-a, ele aumenta o tempo de espera do usuário e faz com que outro parceiro, mais distante daquele ponto, venha a ser acionado; dependendo do tempo transcorrido entre o aceite e o cancelamento, será cobrada uma taxa do usuário, que, provavelmente, abrirá uma reclamação junto à equipe interna da demandada."
Na mesma linha, admite a defesa que uma alta taxa de cancelamento tem por consequência o descredenciamento: "O descredenciamento por alta "taxa de cancelamento" é aplicável apenas para casos de mal-uso da plataforma. Isto é, quando quando o Motorista gera sobrecarga desnecessária à plataforma, prejudicando os outros Motoristas Parceiros e os passageiros da Plataforma, ou em casos de fraude."
A regra é: esteja disponível para anteder ao cliente, aguarde-o por 10 minutos, nunca permita que outro motorista dirija o carro utilizando o seu ID de motorista, utilize indumentária adequada e sem referência à marca UBER, seja profissional, cortês, gentil, dirija com cuidado e atenção, não cancele corridas aceitas, seja prudente em seus atos e palavras, não difame a UBER ou quaisquer de seus motoristas ou clientes. Se não seguir as regras, o que será avaliado exclusivamente pela UBER sem qualquer direito a contraditório, você poderá ser desativado ou ter seu acesso restringido. Você poderá ser desativado. Você poderá ser desativado. Você poderá ser desativado. Você poderá ser desativado.
A plataforma detém um algoritmo que é "um conjunto metódico de passos que pode ser usado na realização de cálculos, na resolução de problemas e na tomada de decisões" e é alimentado por pessoas humanas que o programam para tomar decisões, dentre as quais: advertir o motorista que faz sucessivos cancelamentos em prejuízo ao negócio- atender o passageiro o mais rapidamente possível e com qualidade. (HARARI, Yuval Noah. Homo Deus. Uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 91.)
Este patrão "invisível" é muito mais controlador do que o capaz da fábrica. Importa nos familiarizarmos com o conceito de algoritmo trazido por matemáticos dada a importância que detêm no atual quadrante histórico para a interpretação e aplicação do conceito de subordinação:
"As plataformas são "alimentadas por dados, automatizadas e organizadas por meio de algoritmos" (VAN DIJCK; POELL, T.; DE WAAL, 2018). Segundo Kleinberg "pode-se pensar informalmente um algoritmo como um passo a passo, um conjunto de instruções, expressado em uma linguagem estilizada, para a resolução de um problema" (KLEINBERG, 2008. p. 1). Ele transforma "dados em resultados desejados" (GILLESPIE, 2018).
Os algoritmos, como qualquer outra tecnologia, são produzidos a partir do trabalho humano para empresas de tecnologia e ao mesmo tempo, "também são resultados das interações das pessoas comuns com esses algoritmos" (GROHMANN, 2020). É criado pelas empresas que constroem e determinam as regras do negócio. Ele que controla a relação laboral, aparece como executor da vontade e valores da empresas, um intermediário entre a plataforma e o trabalhador. Em tempos de arquitetura da informação (WURMAN, 1997) (e o controle está aí, na maneira como a informação é produzida e manipulada pela empresa), principalmente aquele que está sendo controlado, não enxerga a pessoa do controlador, podendo portanto, compreender a técnica como neutra.
Mazzotti (2017) alerta que o algoritmo é considerado invisível, apesar de integrado em diversos aspectos do cotidiano das pessoas, torna-se uma caixa preta e é afastado do escrutínio do público, passando a ser encarado como um elemento natural. Isso gera ar de falsa liberdade, de falsa autonomia, ou melhor de liberdade controlada, necessários nos dias atuais. Portanto, é necessário o exercício de ressaltar que o algoritmo de neutro não tem nada. Para afastar o que Taina Bucher (2017) chama de imaginário algorítmico de neutralidade e objetividade. (CASTRO, Viviane Vidigal. As ilusões da uberização do trabalho: um estudo à luz da experiência de motoristas uber.. In: 44º Encontro Anual da ANPOCS, 2020. Anais do 44º Encontro Anual da ANPOCS.)
Neste cenário, vê-se claro que a Viviane tem, de fato, um chefe.
Importa compreender, portanto, diferente do que fez o juiz de origem, a frase da Erica de que não tem um chefeno contexto da contemporaneidade, ou seja, retirada do contexto da fábrica e da organização produtiva do tipo fordista/taylorista e inseri-la no contexto neo-fordita, da estrutura empresarial algorítmica e da organização do trabalho no curso da Revolução Digital, mediante a utilização de plataformas digitais que apropriam e organizam o trabalho em sistema de Crowdsourcing.
O chefe da Viviane, ou seja, aquele que sintetiza todos os comandos inseridos pela ré, é o algoritmo!
E ainda lembrar que o algoritmo é nutrido por dados e elaborado para atingir resultados no interesse daquele que o detém, ou seja, a UBER. O algoritmo não é neutro. E, melhor elaborando, tendo a concluir que o chefe da Viviane é o dono do algoritmo, a UBER.
E as regras devem ser cumpridas, a conduta deve ser retilínea, as palavras devem ser adequadas para que você, motorista, seja bem avaliado. Ou você poderá ser desativado. Você poderá ser desativado. Você poderá ser desativado. Você poderá ser desativado. Você poderá ser desativado.
A tecnologia, nestes termos, induz o comportamento, predefinindo as condutas prováveis e, mais que isso, delimita antecipadamente o próprio uso da vontade livre pelo trabalhador, para que este haja estritamente segundo a vontade da empresa. O essencial do poder não é exercido contra a vontade do outro.
Ao contrário, o ápice do poder é obter e controlar a vontade alheia, para que o assujeitado antecipe a vontade do poderoso como sua própria vontade. "O poder do poder consiste justamente no fato de induzir sem precisar ordenar expressivamente por meio de decisões e ações"(HAN, Byung-Chul. O que é poder. Petrópolis, Vozes, 2019, p. 33.)
Daí que a subordinação laboral, como relação de poder, se efetiva, muito mais que na emissão de ordens expressas, na obtenção silenciosa e eficiente da conduta desejada pelo poderoso, que é assumida pelo assujeitado da relação como se fosse a sua vontade. Como explicitado pelo magistrado Leonardo Wandelli em aula proferida no Curso Plataformas Digitais de Trabalho: Aspectos Materiais e Processuais, promovido pela ANAMATRA/ENAMATRA, em 26/10/2020:
O essencial do poder ocorre no silêncio. Se tudo está de acordo, se as expectativas de conduta do poderoso são atendidas voluntariamente pelo assujeitado, como se fosse a sua própria vontade, os objetivos do poderoso estão sendo alcançados e este não precisa interromper o silêncio para emitir uma ordem, uma sanção, ainda que positiva ou muito menos para dizer: "eu mando". Quando o poder precisa se mostrar como poder, ou emitir alguma ordem expressa, é porque algo já não deu certo. É o início de uma crise no poder. Portanto, as ordens expressas são exceções e muitas vezes o início de uma crise na relação de subordinação, não a sua essência.
Ainda, assim, como visto, uma série de elementos de usos comunicativos advertindo o cumprimento das regras e mesmo acenando com sanções e premiações, é praticado pela ré.
Sobre a fiscalização da atividade e avaliação, dizem os TERMOS E CONDIÇÕES GERAIS DOS SERVIÇOS DE INTERMEDIAÇÃO DIGITAL:
"2.6. Avaliação
2.6.1. O(A) Cliente reconhece e concorda que: (i) após prestar Serviços de Transporte, o aplicativo móvel da Uber solicitará ao(à) Usuário(a) que faça uma avaliação desse Serviço de Transporte, do(a) Motorista e, opcionalmente, comente esse Serviço de Transporte e o(a) Motorista; e (ii) após a prestação de Serviços de Transporte, o aplicativo solicitará ao(à) Motorista que faça uma avaliação do(a) Usuário e, opcionalmente, comente sobre esse(a) Usuário(a). O Cliente deverá instruir todos(as) os(as) Motoristas a fazerem avaliações e comentarios de boa-fé.
2.6.2. O(A) Cliente reconhece que a Uber deseja que os(as) Usuários(as) tenham acesso a serviços de alta qualidade por meio do aplicativo móvel da Uber. Para continuar a receber acesso ao Aplicativo de Motorista e aos Serviços da Uber, o(a) Motorista reconhece que precisará manter uma avaliação média dada pelos(as) Usuários(as), que exceda a avaliação média mínima aceitável pela Uber para o Território, conforme for atualizada pela Uber, a qualquer momento e a seu exclusivo critério ("Avaliação Média Mínima"). Caso a média de avaliação do(a) Motorista fique abaixo da Avaliação Média Mínima, a Uber notificará o(a) Cliente poderá dar ao(à) Motorista, a critério da Uber, um prazo limitado para que eleve sua média de avaliação para acima da Avaliação Média Mínima. Caso o(a) Motorista não eleve sua média de avaliação acima da Avaliação Média Mínima no prazo que lhe foi concedido (se for o caso), a Uber poderá desativar o acesso desse(a) Motorista ao Aplicativo de Motorista e aos Serviços da Uber. Ademais, o(a) Motorista reconhece e concorda que se o Motorista deixar reiteradamente de aceitar solicitações de Usuário(a) para Serviços de Transporte enquanto o(a) Motorista estiver conectado(a) ao Aplicativo de Motorista isso cria uma experiência negativa para os(as) Usuários do Aplicativo móvel Uber. Assim sendo, o(a) Cliente concorda e assegura que, caso um(a) Motorista não deseje aceitar solicitações de Usuários para Serviços de Transporte por um período de tempo, esse(a) Motorista deverá se desconectar do Aplicativo de Motorista.
2.8. Serviços Baseados em Localização. O(A) Cliente reconhece e concorda que todas as informações de geolocalização do(a) Motorista devem ser fornecidas aos Serviços da Uber através de um Dispositivo para a prestação dos Serviços de Transporte. O(A) Cliente reconhece e concorda, e deverá informar e obter o consentimento de cada motorista (quando aplicável), que: (a) As informações de geolocalização do(a) Motorista serão monitoradas e acompanhadas pelos serviços da Uber quando o(a) Motorista estiver conectado(a) ao Aplicativo de Motorista e disponível para receber solicitações de Serviços de Transporte, ou quando o(a) Motorista estiver prestando Serviços de Transporte; e (b) a localização aproximada do Veículo de Motorista será exibida para o(a) Usuário(a) antes e durante a prestação de Serviços de Transporte para esse(a) Usuário(a). Além disso, a Uber poderá monitorar, acompanhar e compartilhar as informações de geolocalização do(a) Motorista obtidas pelo Aplicativo de Motorista e pelo Dispositivo por razões de segurança, técnicas, de marketing e comerciais, inclusive para disponibilizar e aprimorar produtos e serviços da Uber".
O monitoramento das informações de geolocalização permite o controle, em tempo real, das atividades do motorista, assim como permite que a plataforma "entenda", para utilizar o termo da testemunha ouvida nesses autos, ou o algoritmo tome a decisão de enviar mensagens ao motorista ou não envie qualquer mensagem, a partir das informações que lhe são repassadas para processamento, resolução de problema e tomada de decisão, no interesse da "saúde da plataforma", ou melhor, da satisfação da missão da UBER - "oferecer, ao simples toque de um botão, uma opção de mobilidade acessível e eficiente"- incentivando o motorista a seguir "on line", ativo, aceitando corridas, quaisquer que sejam as suas condições físicas e emocionais do trabalhador.
O envio das mensagens de "incentivo" está demonstrado nos documentos de ID. 6e1337c dos autos do processo nº 0101291-19.2018.5.01.0015, onde se lê: "Você está apenas a 8 minutos de dirigir para ganhar 2 horas. Você quer mesmo ficar offline?". "Chegue a 10 viagens. Você está a 5 viagens de fazer 10 viagens hoje. Você quer mesmo ficar offline?". "Tem certeza? Se ficar offline, você deixará de ganhar."
Manifestando-se sobre esses documentos, diz a defesa apresentada nos autos do processo nº 0101291-19.2018.5.01.0015: "Trata-se de mensagens de texto, não anexadas com as respectivas e necessárias atas notariais, cujos destinatários foram "cortados". Não é possível saber se as mensagens foram de fato encaminhadas à Reclamante. Estes documentos não fazem prova de subordinação e, tampouco, de controle da 1ª Reclamada, haja vista que nenhum deles contém obrigações, e, portanto, não comprovam a tese obreira de existência de vínculo."
Não há, portanto, impugnação específica ao conteúdo dessas ou de outras mensagens anexadas à inicial, que servem para provar que a ferramenta de geolocalização é utilizada para fiscalizar o tempo e modo do desenvolvimento da atividade do motorista e o algoritmo, a partir desses dados processados, toma a decisão de enviar mensagens ao motorista para que ele siga "online" ou advertindo-o quanto à taxa de cancelamento.
As mensagens disparadas ao motorista são agregadas ao programa e às regras pré-definidas condicionando o comportamento do motorista e restringindo sua liberdade.
A defesa interpreta "que a Reclamada não realiza qualquer tipo de avaliação do desempenho da Reclamante, cabendo tal avaliação apenas e tão somente ao seu cliente, o Usuário (passageiro)".
Contudo, admite que utiliza a avaliação para descredenciar motoristas mal avaliados pelo Usuário, assim como envia mensagens orientando o motorista sobre como melhorar seu desempenho e voltar a ter boa avalição: "as mensagens e e-mails enviados pela Uber aos Motoristas Parceiros foram apenas e tão somente orientação para a melhoria do transporte prestado pela Reclamante aos Usuários, baseado em dicas de "Motoristas 5 Estrelas", bem avaliados, ou em melhores práticas para utilização da plataforma. Ante o exposto, não há ordem ou obrigação para que a Reclamante, enquanto Motorista Parceira, tenha que adotar esta ou aquela conduta".
Sobre o tema Viviane Vidigal:
A avaliação baseada no feedback dos clientes constitui a principal ferramenta de que dispõe a Uber para manter seus motoristas sob constante controle e estrita submissão aos padrões impostos por ela.
O fato de os trabalhadores terem de se comportar conforme as diretrizes da empresa, esforçando-se para fazer do transporte uma experiência agradável para o usuário da Uber - o que se denomina por trabalho emocional -, é colocado como invisível pela estrutura posta.
CASTRO, Viviane Vidigal de. As ilusões da uberização: um estudo à luz da experiência de motoristas Uber. 2020. 1 recurso online (303 p.) Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP.
A defesa argumenta que a avaliação é bilateral e que poderia descredenciar usuários passageiros, na mesma medida. Não traz qualquer prova de que o faça, contudo.
Ao passo que ter a Viviane se desviado das regras definidas unilateralmente pela UBER, fiscalizada por meio do algoritmo e das avaliações, cujo conteúdo foi analisado exclusivamente pela UBER a partir a oitiva de seus clientes passageiros, importou na rescisão do contrato, como está confesso:
"que a desativação da conta da reclamante deu-se por mau uso da plataforma, não tendo a mesma seguido os termos de uso, mediante relatos reiterados os passageiros acerca de infrações de trânsito por conta da reclamante, a qual também se negou a fazer corridas com passageiros cadeirantes".
É irrelevante que não seja a UBER quem produz o conteúdo das avaliações na medida em que demanda de seu cliente usuário passageiro informações sobre a qualidade do serviço prestado, que insere tais dados no sistema para conhecimento, análise e deliberação, utilizando o exato mesmo fluxo de que se vale um prestador de serviços a terceiros ou um empregador quando colhe informações de clientes externos.
O que é relevante é que é a ré quem define os critérios para o uso do conteúdo das avaliações, assim como dos dados de geolocalização, para o exercício do poder disciplinar aplicando sanções, como a suspensão, aos trabalhadores, tal qual narrado pela testemunha ouvida a rogo da ré.
O contrato, aliás, reiteradamente prevê a desativação ou restrição de uso da plataforma aos motoristas que não cumprem as regras elaboradas exclusivamente pela UBER, que podem ser alteradas unilateralmente e ditadas pela UBER, o que se traduz, em direito, como poder diretivo - faculdade de ditar as regras - e poder disciplinar- capacidade de aplicar sanções.
O exercício de poder diretivo e disciplinar da UBER sobre VIVIANE está exaustivamente demonstrado como presente, característico e central na relação jurídica entre UBER e a motorista Viviane.
Da prova dos autos, extraio, em síntese:
a) As regras para o desenvolvimento da atividade de motorista estão rigidamente fixadas no contrato de adesão, reservando-se a UBER a alterá-las unilateralmente, em verdadeiro jus variandi;
b) As regras para o comportamento do motorista estão rigidamente fixadas no contrato de adesão;
c) Cada regra fixada está acompanhada da consequência pelo seu não cumprimento que é a suspensão temporária ou desativação, ou seja, a ruptura do contrato;
d) A UBER, pelo algoritmo, suspende temporariamente o motorista que faz sucessivos cancelamentos;
e) A ferramenta de geolocalização fiscaliza o tempo e o modo de realização da atividade de motorista;
f) A UBER, pelo algoritmo, decide pelo envio de mensagens para os motoristas para que não cessem o trabalho;
g) O algoritmo decide pelo envio de mensagens para o motorista para que o motorista reduza sua taxa de cancelamento;
h) A UBER adverte os motoristas de que sua taxa de avaliação está abaixo da "média" da região;
i) A UBER envia mensagens e e-mails com orientação sobre como melhorar sua avaliação;
j) O descumprimento das regras conduz a ruptura do contrato, após advertência e suspensão;
k) A UBER avalia unilateralmente e sem qualquer possibilidade de manifestação do motorista, decidindo a seu exclusivo critério, pela ruptura do contrato.
Outrossim, considero que o fato de o trabalhador concorrer com o seu veículo e arcar com os custos da manutenção do carro, que é a ferramenta para o seu trabalho, não o torna detentor dos meios de produção.
O motorista só tem a oferecer no mercado a sua força de trabalho. E a oferece a UBER que organiza, pelas inúmeras regras ditadas no contrato, s quais são fiscalizadas rigorosamente, a produção dos serviços de transporte que o usuário passageiro contrata com UBER.
O veículo, que acresce à prestação, é apenas uma das ferramentas de trabalho, mas está longe de ser o principal meio de produção ou de lhe assegurar qualquer domínio sobre a atividade econômica.
Os principais meios de produção da Uber estão na propriedade do aplicativo, na enorme estrutura de processamento de informações, sem a qual esse modelo de negócio seria inviável, nos vultosos investimentos em marketing e tecnologia e no domínio da base de clientes e dos dados captados.
Diante da magnitude desses ativos, que a ré controla intensamente, cujo valor atinge estimativas de dezenas de bilhões de dólares, a mobilização dos veículos que a ré poderia fazer sob qualquer outra forma é menos relevante. E, principalmente, a propriedade ou a locação do veículo pelo trabalhador não assegura a este qualquer domínio autônomo sobre a atividade, que não é possível sem aqueles meios mantidos pela ré. Note-se que sequer acesso à base de dados da sua clientela o motorista pode ter. Isto porque os clientes são da ré, não do motorista, como já destacado em tópico anterior.
Sobre a detenção dos meios de produção, explica Viviane Vidigal:
É curiosa como a propriedade dos meios de produção se revela neste caso. Os entrevistados citam expressamente dois meios de produção: o automóvel e o celular (smartphone). Não é necessário ter a propriedade legal de todos os meios de produção para se ter o controle do negócio. A Uber controla os termos do contrato de adesão, o preço da corrida, a escolha do passageiro, a permanência e exclusão do motorista da plataforma. A empresa controla todo processo de trabalho e de produção. As regras são determinadas pela empresa capitalista, a despeito de ela não possuir um único veículo. Standing (2019) afirma que a empresa não é proprietária dos principais meios de produção. Mas como valoramos o que é principal e o que é secundário?
Ao dizer que não é necessário ter a propriedade de todos os meios de produção, para se ter o controle da relação, analisamos os meios de produção em conjunto, não apenas "o" meio de produção. Um trabalhador com um carro e um smartphone não é necessariamente um motorista Uber. Para além dos dois meios de produções citados pelos entrevistados, destacamos a existência de um terceiro meio de produção: o aplicativo/algoritmo. A empresa é proprietária legal do aplicativo e por ele domina a interface motorista-passageiro. Faz a mediação pelo aplicativo. Sem ele não há o contato com o passageiro. Ser detentora da tecnologia basta para controlar toda a relação. Para a empresa, não possuir todos os meios de produção é vantajoso, pois, o custo da produção abaixa, pois, não precisa mobilizar o investimento em automóveis e smartphones. Do ponto de vista do capitalista é uma situação benéfica que gera mais lucros. Já para o trabalhador, para quem os encargos e riscos são transferidos, significa ter custos.
A princípio, não parece haver um secundarismo do aplicativo em comparação ao automóvel, tendo em vista o controle da relação exercido por aquele, todavia, podemos alegar que na Uber, o meio de produção mais evidente é o automóvel. E não ter a propriedade do meio de produção mais evidente pode gerar consequências práticas. Ser dono do carro pode significar que o motorista pode se identificar mais facilmente como autônomo, se distanciando da ideia de empregado subordinado. E esse entendimento é encontrado também nos julgados do judiciário trabalhista: "o reclamante mostrou-se dono do seu trabalho e também dos meios de produção (inclusive com veículo próprio), não havendo relação de subordinação jurídica com as Reclamadas" (BRASIL, 2017 a).
Nesse sentido, alertamos para o perigo de uma análise supérflua da propriedade do meio de produção mais aparente, feita de forma isolada. A mera propriedade do automóvel não gera autonomia. É necessária uma análise conjunta, pois o algoritmo é de propriedade da empresa, sendo a propriedade desse meio de produção suficiente para controlar todo o negócio e subordinar os trabalhadores às suas regras/sanções. (grifos nossos)
(CASTRO, Viviane Vidigal) As ilusões da uberização do trabalho: um estudo à luz da experiência de motoristas uber.. In: 44º Encontro Anual da ANPOCS, 2020. Anais do 44º Encontro Anual da ANPOCS.)
Nesta relação em que regras são ditadas, o cumprimento dessas regras é fiscalizado e punições são aplicadas, de advertências a suspenções, com ameaças de ruptura do contrato, não há espaço em autonomia. Viviane está inserida na organização produtiva de outrem.
Peço licença para citar trecho da sentença inglesa acima referida:
"It seems to us that the respondents´ general case and the written terms on which they rely do not correspond with the practical reality. the notion that uber in London is a mosaic of 30.000 small businesses linked by a common platform is to our minds faintly ridiculous. in each case, the "business" consists of a man with a car seeking to make a living by driving it. Ms Bertram spoke of Uber assisting the drivers to "grow" their businesses, but no driver is in a position to do anything of the kind, unless growing his business simply means spending more hour at the wheel. Nor can Uber´s function sensibly be characterised as supplying drivers with "leads". That suggests that the driver is put into contact with a possible passenger with whom he has the opportunity to negotiate and strike a bargain. But drivers do not and cannot negotiate with passengers (except to agree a reduction of the fare set by Uber). They are offered and accept trips strictly on Uber´s terms."
"Parece-nos que o caso geral dos demandados e os termos escritos nos quais eles se baseiam não correspondem à realidade prática. A noção de que Uber em Londres é um mosaico de 30.000 pequenas empresas vinculadas por uma plataforma comum é um pouco ridícula para nossas mentes. Em cada caso, o "negócio" consiste em um homem com um carro que procura ganhar a vida dirigindo-o. o Sr. Bertram falou em ajudar os motoristas a "expandir" seus negócios, mas nenhum motorista está em posição de fazer algo desse tipo, a menos que expandir seus negócios signifique simplesmente passar mais horas no volante. A função da Uber também não pode ser caracterizada como fornecedora de "vanagens" aos motoristas. Isso sugere que o motorista é colocado em contato com um possível passageiro com quem ele tem a oportunidade de negociar e fazer uma pechincha. Mas os motoristas não negociam e não podem negociar com os passageiros (exceto para concordar com uma redução da tarifa estabelecida pela Uber). Eles são oferecidos e aceitam viagens estritamente nos termos da Uber. (tradução livre)
Nós, aqui, respeitosamente, novamente concordamos.
Vale, na oportunidade, o registro de que, em 19/02/2021 - recentemente, portanto - a Suprema Corte do Reino Unido confirmou decisão de que os condutores da Uber devem ser considerados empregados, e não prestadores de serviço independentes, decisão que pode ser consultada, em sua integralidade: https://www.supremecourt.uk/cases/uksc-2019-0029.html.
Os elementos dos autos demonstram inequívoca subordinação de Viviane a UBER caracterizada por feixe e intensidade de ordens dadas ao trabalhador orientadoras da forma de realização do trabalho por meios telemáticos (algoritmos) com rigorosa fiscalização do cumprimento das ordens característicos do poder diretivo com aplicação de sanções próprias do poder disciplinar.
A Recomendação nº 197 da Organização Internacional do Trabalho - OIT - relativa à Relação de Trabalho, com a valorização do Trabalho Decente -, determina o combate às relações de trabalho disfarçadas no contexto de outras relações que possam incluir o uso de formas de acordos contratuais que escondam o verdadeiro status legal - como no caso sob exame, em que, por meio de um contrato cível de intermediação digital consubstanciado na adesão da autora aos "TERMOS E CONDIÇÕES GERAIS DOS SERVIÇOS DE INTERMEDIAÇÃO DIGITAL" (ID 6850559) e ao "ADENDO DE MOTORISTA" (ID. 700a01c), pretendeu-se mascarar um vínculo empregatício.
Conclusão
Por todo o exposto, verificando-se na prova dos autos a presença de todos os elementos da relação de emprego, impõe-se o reconhecimento da formação de vínculo entre a Viviane e a Uber, provejo o recurso, para reconhecer e declarar a relação de emprego.
Em sentido análogo, acórdão deste Regional e desta E. 7ª Turma, da lavra do Exmo. Desembargador Rogério Lucas Martins, publicado em 14/04/2021, do qual consta a seguinte ementa:
UBER. PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DA REALIDADE. EXISTÊNCIA DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO. Restando caracterizado pelos elementos dos autos que por meio da plataforma digital através da qual conecta os seus usuários a Ré controla o serviço realizado pelos motoristas por ela credenciados para a exploração da atividade econômica de transporte, não se revestindo a força de trabalho empenhada por tais trabalhadores das características de autonomia, impõe-se a declaração da existência da relação de emprego para todos os efeitos legais previstos na legislação consolidada.
Tendo sido reconhecido o vínculo de emprego entre as partes, necessário se faz analisar os demais pedidos decorrentes.
No tocante ao período de prestação de serviços, observo que a autora informa o período de 01/12/2018 a 30/05/2019, o que sequer foi impugnado pela ré, tampouco havendo prova em sentido contrário nos autos. Dessa maneira, considero como sendo de 01/12/2018 a 30/05/2019 o período de prestação de serviços.
Quanto à remuneração da autora, variável - salário por obra ou serviço, reconheço como válido o documento de ID. f22a5ac, não impugnado, devendo ser registrada a CTPS como salário por ordem de serviço, garantido o salário mínimo.
Em relação à modalidade de dispensa, a autora afirma ter sido imotivadamente dispensada. Por sua vez, a ré invoca a justa causa como modalidade de rescisão contratual, sob argumento de que a conduta da autora, ao cancelar corridas, estaria enquadrada na hipótese da alínea "b" do artigo 482 da CLT.
A justa causa é a pena mais grave que o empregador pode imputar ao empregado, cuja aplicação dar-se-á em virtude da prática de ato doloso ou culposamente grave que faça desaparecer a confiança e a boa-fé que existem entre trabalhador e seu empregador. Por isso, exige prova robusta e incontestável de fato que impeça a continuidade da relação de emprego, por quebra do elemento fidúcia, intrínseco ao vínculo formado e por gerar inúmeros transtornos na vida familiar, profissional e social do empregado.
Para que a falta se insira adequadamente nos limites legais caracterizadores da justa causa, imperiosa a presença dos seguintes requisitos, a saber: a) previsão da conduta dentre aquelas consideradas justo motivo para término do vínculo, taxativamente previstas em lei (artigo 482 CLT); b) gravidade da falta, de forma tal que impossibilite a continuidade do vínculo; c) proporcionalidade entre a falta e a punição; d) imediatidade, assim entendida a atualidade, entre a falta e a punição; e) ausência de perdão, tácito ou expresso; f) ausência de outra punição pelo mesmo fato, sob pena de bis in idem; g) configuração de nexo causal entre a falta e o rompimento; h) análise das condições objetivas e subjetivas do ato, assim entendidas as primeiras como os fatos e circunstâncias materiais que envolveram a prática do ato faltoso, e as segundas as características pessoais do empregado.
Uma vez que constitui exceção ao princípio da continuidade da relação do emprego e fato impeditivo do direito às verbas decorrentes da dispensa imotivada, incumbe ao empregador o ônus de provar a falta grave atribuída ao empregado, a teor dos artigos 818, II, da CLT, e 373, II, do CPC.
E, no caso da hipótese apontada pela ré,ensina Maurício Godinho Delgado que, quanto ao mau procedimento, "no quadro dessa perigosa amplitude, é essencial ao operador jurídico valer-se, com segurança, técnica e sensibilidade, dos critérios subjetivos, objetivos e circunstanciais de aferição de infrações e de aplicação de penalidade do Direito do Trabalho. Em especial, deve avaliar a efetiva gravidade da conduta, para que o conceito de moral, naturalmente largo, não estenda desmesuradamente o tipo jurídico em exame" (DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 15 ed. São Paulo: LTr, 2016. P. 1331).
In casu, observo que a conduta descrita pela ré sequer foi demonstrada nos autos, não tendo sido juntado qualquer documento que demonstrasse que a autora realizava o cancelamento de inúmeras corridas, tampouco que isso ocorria de forma reiterada.
Como já muito debatido, a ré efetivamente controla a prestação de serviços dos motoristas, sendo plenamente possível juntar aos autos documento que comprovasse que a autora realizava cancelamentos, de forma não isolada, prejudicando a prestação do serviço final em relação aos usuários.
Verifico, portanto, que o fato trazido pela ré como apto a ensejar a ruptura por justa causa não restou comprovado.
Pelo o exposto, a ré não se desincumbiu do ônus de comprovar a existência de qualquer falta apta a ensejar a demissão por justa causa, razão pela qual fica afastada tal alegação.
Desse modo e, considerando o Princípio da Continuidade da Relação de Emprego, que imputa uma presunção favorável ao empregado, considero que a rescisão contratual se deu de maneira imotivada.
Tendo em vista o reconhecimento da dispensa sem justa causa como modalidade aplicada ao caso e, inexistindo prova da quitação das verbas rescisórias, condeno a ré no pagamento do saldo salarial (10 dias), aviso prévio de 30 dias, 13º salário proporcional de 2016 (9/12), 13º salário integral de 2017, 13 salário proporcional de 2018 (06/12), férias integrais mais 1/3 dos períodos de 2016/2017 e 2017/2018, férias proporcionais mais 1/3 (04/12), FGTS com multa fundiária de todo o período contratual.
A jurisprudência deste Regional consagrou o cabimento da multa do art. 477, § 8º, da CLT nos casos de reconhecimento de vínculo, a teor da Súmula nº 30.
Condeno a ré, ainda, ao pagamento de indenização substitutiva ao seguro-desemprego referente ao último período contratual.
De fato, o inciso II da Súmula nº 389 do C TST autoriza a condenação do empregador ao pagamento de indenização quando ele deixar de cumprir a obrigação de fazer ou se, por sua culpa, não foi possível o recebimento do seguro-desemprego oportunamente, exatamente o caso dos autos.
Fica declarada a existência do vínculo no período de 01/12/2018 a 30/05/2019, com remuneração salário por ordem de serviço, garantido o salário mínimo nacional, no importe mensal médio constante no documento de ID. f22a5ac, devendo a ré proceder à anotação da CTPS, no prazo de 10 dias a contar da intimação, sob pena de multa diária de R$ 300,00.
Diante do exposto, dou provimento para reconhecer o vínculo de emprego entre reclamante e reclamada, no período de 01/12/2018 a 30/05/2019, condenando a ré ao pagamento do aviso prévio (30 dias), 13º salário proporcional de 2018(01/12), 13º salário proporcional de 2019 (06/12), férias proporcionais mais 1/3 (07/12), FGTS com multa fundiária de todo o período contratual, indenização substitutiva de seguro desemprego e multa do artigo 477, § 8º, da CLT, devendo ainda a ré anotar a CTPS da autora, conforme consta da fundamentação.
DAS HORAS EXTRAS
Pretende a parte autora a reforma da sentença para que a ré seja condenada ao pagamento das horas extras pretendidas na inicial.
Passo ao exame.
Na exordial, a autora narra a jornada das 8h às 22h, de segunda a domingo, inclusive feriados, com 2 horas de intervalo intrajornada.
Em defesa, a UBER assegura que a autora não faz jus ao pagamento das horas extras sob argumento de que o labor era realizado externamente, sem qualquer controle de horário, bem como que a autora possuía total liberdade para escolher os horários das viagens.
Pois bem.
O artigo 62, I, da CLT excepciona a obrigatoriedade do registro de controle de jornada aos empregados que exercem atividades externas incompatíveis com a fixação de horário.
Extrai-se do referido dispositivo que a simples existência de prestação externa dos serviços não afasta, por si só, a obrigatoriedade de registro da jornada. Assim, uma vez constatada a possibilidade de fiscalização pela empregadora, é seu o ônus de controlar a jornada do empregado, consoante o disposto no artigo 74, §2º, da CLT.
No caso em comento, noto que o controle de jornada era perfeitamente possível. Conforme já tratado no tópico acerca da existência do vínculo empregatício, é certo que a UBER realiza controle absoluto das viagens realizadas pelos trabalhadores, possuindo também controle dos momentos em que os motoristas estão disponíveis no aplicativo.
Cumpre ressaltar que os empregados que devem ser inseridos na exceção do artigo 62 da CLT são aqueles que executam suas atividades de forma tal que o empregador não tem, efetivamente, como saber em que horários estão ou não trabalhando, o que não se confunde com aquelas situações em que, apesar de dispor de meios para controlar a jornada do empregado, o empregador opta pela ausência de controles de horário, não pela impossibilidade de mantê-los, mas, na maiores das vezes, por conveniência, com o escopo de se desonerar do pagamento de horas extraordinárias.
Não há qualquer dúvida de que a UBER não só poderia monitorar os horários como efetivamente o fez, inexistindo a incompatibilidade alegada por ela entre a natureza do serviço e o controle do horário de trabalho.
Ademais, também não merece prosperar a alegação de que a autora possuía ampla liberdade na escolha dos horários laborados. Conforme exaustivamente debatido no tópico relativo ao vínculo empregatício, é indubitável a existência não só de controle da ré, como também de incentivo e exigência que os motoristas trabalhem cada vez mais e mais, a fim de serem beneficiados e não sofrerem punição por parte da UBER. Além disso, sob o falso pretexto de liberdade, a UBER transfere, em verdade, ao motorista a responsabilidade por seus ganhos, assim, conforme já transcrito anteriormente, "A passagem do salário por tempo para o salário por peça materializa uma transferência do controle sobre o trabalho da gerência do tempo e produtividade para o próprio trabalhador. Marx explica que ao remunerar não pelo tempo, mas pela quantidade produzida, favorece um aumento tanto da extensão do tempo de trabalho como de sua intensidade" (CASTRO, Viviane Vidigal. As ilusões da uberização do trabalho: um estudo à luz da experiência de motoristas uber.. In: 44º Encontro Anual da ANPOCS, 2020. Anais do 44º Encontro Anual da ANPOCS).
Nesse contexto, considero ser da UBER o ônus da prova acerca da carga horário cumprida pela recorrente, encargo do qual não se desincumbiu - atraindo a aplicação da Súmula 338 do TST, razão pela qual reputo verdadeira a jornada descrita na inicial: de segunda a domingo, das 8h às 22h, com 2 horas de intervalo intrajornada.
Cumpre mencionar que a autora trouxe aos autos documento de histórico das viagens por ela realizadas (ID. 07e5dd3). Observo que tal documento é produzido pelo aplicativo da ré, demonstrando, mais uma vez, que ela possui os documentos que comprovariam os horários em que a autora efetivamente realizou corridas, bem como que permaneceu "on line". Todavia, entendo não ser possível fixar a jornada da autora apenas com base em tais cópias, eis que demonstram apenas o horário do início de cada viagem, não trazendo a informação do período que permaneceu à disposição da ré.
Destarte, diante de todo o exposto, considerando a jornada ora fixada e a forma de remuneração da autora, condeno a ré ao pagamento do adicional de 50% relativo às horas laboradas além da 8ª diária, e de 100% para o labor aos domingos e feriados, aplicando-se a Súmula 340 do C. TST, inclusive no tocante ao divisor.
O valor relativo às horas extras reconhecidas deverá refletir no repouso semanal remunerado, 13º salários, nas férias, acrescidas de 1/3, aviso prévio, FGTS + 40%, conforme se apurar em liquidação.
DO RESSARCIMENTO DOS VALORES DE COMBUSTÍVEL E MANUTENÇÃO DO VEÍCULO
Pretende a reclamante o ressarcimento dos valores gastos com combustível e manutenção do veículo, sob argumento de que o empregador assumiria "os riscos do empreendimento e do próprio serviço prestado".
Razão não assiste à autora.
De fato, o uso do carro particular do empregado implica em assunção de parte dos riscos empresariais, os quais devem ser suportados exclusivamente pelo empregador, na forma do artigo 2º da CLT.
Todavia, a parte autora não trouxe documentos a comprovar a importância despendida em face do uso de seu veículo particular (recibos de pagamento de combustível, depreciação do veículo, gastos com oficinas mecânicas, quilometragem, conforme pretendido), não se podendo olvidar que o dano material demanda prova do prejuízo.
Ante o exposto, nego provimento.
DO DANO MORAL
A autora pretende a reforma da decisão de origem em relação ao pedido de dano moral. Em sua inicial, afirma ter sido arbitrariamente dispensada pela ré, mesmo possuindo "mais de 1.188 (um mil cento e oitenta e oito) viagens em favor da Reclamada e possuía uma nota de avaliação realizada pelos próprios passageiros de 4,94 numa escala de 0,0 à 5,0". Fundamenta também seu pedido no fato de laborar em jornada extenuante.
Examino.
O instituto jurídico da reparação dos danos morais se apresenta no Direito do Trabalho como a resposta à necessária tutela da dignidade, protegendo não só a pessoa em sua integridade psicofísica, mas também a solidariedade, a igualdade e a liberdade humanas. Afinal, o Direito existe para proteger as pessoas e inúmeras situações jurídicas subjetivas demandam proteção, exigindo garantias imediatas e tutela.
A reparação por danos morais decorrentes do contrato de trabalho pressupõe ato ilícito ou abuso do direito praticados pelo empregador ou seu preposto, além do prejuízo suportado pelo trabalhador e do nexo de causalidade entre a conduta ilícita e o dano, nos moldes da legislação vigente (arts. 5º, V e X e 7º, XXVIII, ambos da CRFB/88, bem como dos artigos 186, 187, 927, 932, III, 944, 949 e 950, do CC/02).
O entendimento que se tem sobre o tema é que o dano moral, ao contrário do dano material, não depende necessariamente da ocorrência de algum prejuízo palpável. O dano moral, em verdade, na maior parte das vezes, resulta em prejuízo de ordem subjetiva, cujos efeitos se estendem à órbita do abalo pessoal sofrido pelo ato que lhe ensejou. Nessa esteira, a prova do dano há que ser analisada de acordo com o contexto em que se insere a hipótese discutida, sendo que o resultado varia de acordo com a realidade havida em cada situação específica. Assim, apenas havendo elementos suficientes nos autos para que se alcance o efetivo abalo produzido pelo ato danoso é que se pode cogitar em dano moral.
Com efeito, na hipótese vertente, a conduta antijurídica está configurada, eis que as obrigações contratuais e rescisórias, concebidas para tutela do hipossuficiente, não cumpridas pela empregadora, são de suma relevância, especialmente a anotação do vínculo de emprego e suas repercussões na vida do trabalhador.
Ora, não há dúvida de que o não cumprimento das obrigações trabalhistas conduz o trabalhador-credor ao desamparo ao tempo em que denotada um completo descompromisso do empregador com o cumprimento da lei.
E, a esse respeito, importante destacar que toda a estrutura de negócio da UBER é pensada para fugir da aplicação das regras básicas de regulação da relação capital versus trabalho, propondo-se como um sistema universal de superexploração do trabalho à margem da proteção nacional e internacional da relação de trabalho digna, concedendo aos motoristas parte ínfima dos frutos advindos da atividade econômica, mesmo sendo eles quem, frise-se, exercem a atividade principal e da qual todo o negócio das rés depende.
Incontestável que o desamparo legal e previdenciário decorrente de procedimento da UBER evidencia que a autora efetivamente foi vítima de dano moral, sendo devida a respectiva reparação extrapatrimonial.
Por outro ângulo, não importa perquirir se a trabalhadora está, de fato, sofrendo psicologicamente, porque o dano moral é aferido em comparação com o que sentiria o homem médio, se submetido à situação em tela. Em outras palavras, o dano moral é aferido in re ipsa, de acordo com as regras comuns de experiência.
Ante a manifesta ilicitude na conduta, em evidente violação aos princípios da dignidade humana e do valor social do trabalho, considero, pois, cabível a indenização por danos morais postulada.
Para fixação do quantum indenizatório, deve-se reconhecer a extensão do dano, o bem jurídico violado e as condições econômico-financeiras do causador do dano, observando-se os critérios da proporcionalidade e do caráter pedagógico da indenização. De acordo com tais premissas, bem como o constante no § 1º do artigo 223-G da CLT, fixo a indenização por danos morais em R$ 5.000,00 (cinco mil reais).
Dou provimento para condenar a ré ao pagamento da indenização por dano moral no importe de R$ 5.000,00.
DOS HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS
Mero corolário, ante a inversão da sucumbência ora estabelecida, a apreciação da matéria relativa aos honorários sucumbenciais.
O julgador de origem condenou a autora ao pagamento dos honorários sucumbenciais nos seguintes termos:
"Dos honorários advocatícios
Considerando que a presente ação foi ajuizada após a entrada em vigor da Lei nº 13.467/2017, aplica-se a regra do art. 791-A, caput, da CLT, razão pela qual condeno o reclamante ao pagamento de honorários advocatícios sucumbenciais no montante de 5% (cinco por cento) sobre o valor da causa.
Contudo, como restou deferida a gratuidade de justiça, adoto a regra do artigo 791-A, §4º, da CLT, e as "obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos dois anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário".
Passo à análise.
Tratando-se de ação ajuizada após as alterações introduzidas pela Lei nº 13.467/2017, os honorários advocatícios sucumbenciais são cabíveis por qualquer dos vencidos entre o mínimo de 5% e o máximo de 15%, calculados sobre o valor que resultar da liquidação da sentença, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa, nos moldes do art. 791-A da CLT.
Ante a inversão da sucumbência, condeno a parte reclamada a pagar aos advogados da parte autora honorários advocatícios que ora fixo no percentual de 15% sobre o valor que resultar da liquidação da sentença, considerando o grau de zelo do advogado, o local da prestação de serviços, a importância da causa, uma estimativa do tempo, além da qualidade do serviço.
Por outro lado, constato que na hipótese, ora discutida, apesar da ocorrência da sucumbência recíproca, a autora sucumbiu em parte mínima do pedido (pedido de ressarcimento de despesas e dano moral), devendo ser aplicado, portanto, o artigo 86, parágrafo único do CPC, razão pela qual excluo a condenação imposta na origem ao pagamento dos honorários sucumbenciais em favor da ré.
RECOMENDAÇÕES FINAIS
A atualização monetária e os juros de mora serão determinados pelo juiz no momento oportuno, observando-se critérios vigente à época.
Os recolhimentos previdenciários deverão ser efetuados e comprovados na forma da Lei n° 11.941/09 e dos Provimentos CGJT nºs 01/96 e 02/93 e da Súmula 368 do TST, sob pena de execução direta pela quantia equivalente (artigo 114, inciso VIII, da CR/88).
Autoriza-se, também, a retenção do Imposto de Renda na fonte, sendo que os descontos fiscais deverão ser recolhidos e comprovados conforme a Lei nº 12.350/10 e Instrução Normativa n. 1.500/14, observada a OJ 400 da SDI-I do TST, sob pena de expedição de ofício à Receita Federal.
Declara-se, em atendimento ao artigo 832, § 3º, da CLT, que a natureza das parcelas deferidas seguirá o critério estabelecido nos arts. 28 da Lei 8.212/91 e 214 do Decreto 3.048/99, bem como no Decreto 6.727/2009.
Desde já, recomendo às partes que observem a previsão contida no art. 1.026, §2ºdo CPC, uma vez que o interesse público impõe ao órgão jurisdicional o dever de coibir e de reprimir o abuso do direito de ação em práticas contrárias à dignidade da justiça.
ACÓRDÃO
ACORDAM os Desembargadores que compõem a 7ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região deixar de homologar a proposta de acordo trazida ao processo, conhecer o recurso interposto pela autora VIVIANE PACHECO CAMARA e, no mérito, DAR-LHE PAROVIMENTO para reconhecer a existência de vínculo empregatício entre reclamante e reclamada, no período de 01/12/2018 a 30/05/2019, devendo a ré proceder à anotação da CTPS, no prazo de 10 dias a contar da intimação, sob pena de multa diária de R$ 300,00, bem como para condenar a ré ao pagamento: a) do aviso prévio (30 dias), 13º salário proporcional de 2018(01/12), 13º salário proporcional de 2019 (06/12), férias proporcionais mais 1/3 (07/12), FGTS com multa fundiária de todo o período contratual, indenização substitutiva de seguro desemprego e multa do artigo 477, § 8º, da CLT; b) do adicional de 50% relativo às horas laboradas além da 8ª diária, e de 100% para o labor aos domingos e feriados, com os devidos reflexos, aplicando-se a Súmula 340 do C. TST, inclusive no tocante ao divisor; c) indenização por dano moral no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais); e d) dos honorários sucumbenciais em favor dos advogados da parte autora no percentual de 15% sobre o valor que resultar da liquidação da sentença; bem como para excluir a condenação da autora ao pagamento dos honorários sucumbenciais em favor dos advogados da ré, tudo nos termos da fundamentação do voto da Exma. Desembargadora Relatora.
Custas de R$800,00 face ao valor ora fixado para condenação em R$40.000,00, pela ré diante da inversão da sucumbência, ficando as partes, desde já intimadas do teor da Súmula nº 25 do C. TST.
CARINA RODRIGUES BICALHO
Desembargadora Relatora
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