Data da publicação:
Acordão - TST
Cláudio Mascarenhas Brandão - TST
EXPEDIÇÃO DE ALVARÁ PARA SAQUE DO FGTS. IMPOSSIBILIDADE. CALAMIDADE PÚBLICA RECONHECIDA POR DECRETO LEGISLATIVO.
RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO PELA PARTE AUTORA. LEI Nº 13.467/2017. EXPEDIÇÃO DE ALVARÁ PARA SAQUE DO FGTS. IMPOSSIBILIDADE. CALAMIDADE PÚBLICA RECONHECIDA POR DECRETO LEGISLATIVO. COVID-19. HIPÓTESE DE SAQUE NÃO PREVISTA NA LEI Nº 8.036/90. TRANSCENDÊNCIA JURÍDICA CONSTATADA. O cerne da controvérsia diz respeito à possibilidade de enquadramento da pandemia da covid-19 como desastre natural, em face do disposto no artigo 20, inciso XVI, da Lei nº 8.036/1990, com o fim de autorizar o saque integral dos depósitos do FGTS da conta vinculada da trabalhadora. O Decreto nº 5.113/2004, regulamentador do referido dispositivo legal, define o que se considera desastre natural, nos termos nele expressos. Não há referência, entretanto, à situação de pandemia. Por outro lado, a Medida Provisória nº 946, de 07/04/2020, impôs limites aos valores a serem levantados durante sua vigência (isto é, enquanto permanecer a pandemia da COVID-19), não se vislumbrando motivo para que tais balizas da lei não sejam observadas, "conforme cronograma de atendimento, critérios e forma estabelecidos pela Caixa Econômica Federal", ante o precípuo objetivo de se evitar um colapso no sistema bancário. Releva acrescentar que o STF, nas ADIs 6371 e 6379, da relatoria do Ministro Gilmar Mendes – nas quais se pretendia a liberação de saque das contas vinculadas dos trabalhadores no FGTS em decorrência da pandemia do novo coronavírus –, indeferiu pedido de medida liminar. Considerando que, não obstante em sede liminar, a decisão do STF revela tendência a ser observada, além da legislação regulamentadora do saque do FGTS de forma específica à pandemia causada pela covid-19, não há como deferir a pretensão autoral. Assim, tendo em vista a análise sistemática dos aludidos dispositivos, depreende-se que a pandemia da covid-19 não se enquadra na conceituação legal de desastre natural, não havendo como reconhecer a possibilidade de expedição de alvará judicial, para o saque do FGTS. Há precedentes do TST. Transcendência jurídica reconhecida. Recurso de revista conhecido e não provido. (TST-RR-407-88.2020.5.17.0007, 7ª Turma, rel. Min. Cláudio Mascarenhas Brandão, DEJT 27/05/2022).
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso de Revista n° TST-RR-407-88.2020.5.17.0007, em que é Recorrente JULIENE CORREIA PATROCÍNIO e Recorrido CAIXA ECONÔMICA FEDERAL.
A parte autora, não se conformando com o acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região, interpõe o presente recurso de revista, no qual aponta violação de dispositivos de lei e da Constituição Federal, bem como indica dissenso pretoriano.
Contrarrazões ausentes.
Dispensada a remessa dos autos ao Ministério Público do Trabalho, nos termos do artigo 95, § 2º, II, do Regimento Interno do TST.
É o relatório.
V O T O
MARCOS PROCESSUAIS E NORMAS GERAIS APLICÁVEIS
Considerando que o acórdão regional foi publicado em 25/09/2020, incidem as disposições processuais da Lei nº 13.467/2017.
O recurso é tempestivo, a representação processual está regular e o preparo não é exigível.
Nos termos do artigo 896-A da CLT, com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 13.467/2017, antes de adentrar o exame dos pressupostos intrínsecos do recurso de revista, é necessário verificar se a causa oferece transcendência.
Primeiramente, destaco que o rol de critérios de transcendência previsto no mencionado preceito é taxativo, porém, os indicadores de cada um desses critérios, elencados no § 1º, são meramente exemplificativos. É o que se conclui da expressão "entre outros", utilizada pelo legislador.
A parte autora pretende a reforma do acórdão regional quanto ao tema: EXPEDIÇÃO DE ALVARÁ PARA SAQUE DO FGTS. IMPOSSIBILIDADE. CALAMIDADE PÚBLICA RECONHECIDA POR DECRETO LEGISLATIVO. COVID-19.
Merece destaque a decisão regional, in litteris:
"2.3.1. LIBERAÇÃO DE ALVARÁ. SAQUE DO FGTS. CALAMIDADE PÚBLICA. COVID-19
Tratam os presentes autos de reclamação trabalhista em que a parte autora pretende expedição de alvará judicial para saque do saldo do FGTS depositado em sua conta vinculada, com esteio no artigo 20, XVI, "a", da Lei nº. 8.036/90.
Aduz a requerente ser fato público e notório o estado de calamidade pública desencadeado pelo surto da COVID-19, o que foi objeto de reconhecimento expresso pelo Decreto Federal nº. 06/2020 e Decreto Estadual nº. 0446-S
Defende que o artigo 20, XVI, "a" da Lei nº. 8.036/90 autoriza o levantamento do FGTS em casos de necessidade pessoal, cuja urgência e gravidade decorra de "desastre natural", observado o disposto no Decreto nº. 5.113/04 que regulamenta a matéria. Salienta que, embora não conste nesta norma o termo "pandemia", a jurisprudência do e. STJ já pacificou o entendimento de que o rol do artigo 2º é meramente exemplificativo, abarcando, pois, a hipótese da pandemia causada pelo surto do novo coronavírus. Ademais, aduz que a pandemia do Covid-19 equipara-se ao desastre natural, previsto na lei.
Salienta, ainda, que está desempregada, o que evidencia a sua necessidade real e urgente de recebimento do FGTS, conforme art. 20, XVI, "a".
Ademais, alega que, embora a Medida Provisória 946/20 tenha permitido o saque de parte dos valores depositados em suas contas vinculadas, o limite de levantamento se encontra bem abaixo do esperado, além do que o trabalhador deverá aguardar o cronograma de pagamento, o que pode causar graves prejuízos à requerente.
Por todo o exposto, requer seja expedido alvará judicial autorizando a reclamante a levantar valores de sua conta vinculada ao FGTS no montante de R$6.220,00 (seis mil duzentos e vinte reais).
Decisão proferida pelo juiz a quo concedendo a tutela provisória pretendida pela autora e determinando a expedição de alvará no valor de até R$ 6220,00.
O pedido foi julgado procedente pelo MM. Juízo de origem, nos seguintes termos:
O FGTS é um direito/patrimônio dos trabalhadores (art. 7º, III, da CLT), oriundo de descontos salariais compulsórios de 8% que são destinados às suas contas vinculadas, com saques autorizados em situações adversas específicas, sempre visando à melhoria da condição social dos obreiros. A Lei 8.036/90 assim dispõe acerca da possibilidade de saque dos depósitos do FGTS:
"Art. 20. A conta vinculada do trabalhador no FGTS poderá ser movimentada nas seguintes situações:
(...)
XVI - necessidade pessoal, cuja urgência e gravidade decorra de desastre natural, conforme disposto em regulamento, observadas as seguintes condições:
a) o trabalhador deverá ser residente em áreas comprovadamente atingidas de Município ou do Distrito Federal em situação de emergência ou em estado de calamidade pública, formalmente reconhecidos pelo Governo Federal;
b) a solicitação de movimentação da conta vinculada será admitida até 90 (noventa) dias após a publicação do ato de reconhecimento, pelo Governo Federal, da situação de emergência ou de estado de calamidade pública; e
c) o valor máximo do saque da conta vinculada será definido na forma do regulamento."
O art. 12 do Decreto Legislativo 6/2020 e a Lei 13.979/2020 reconheceram, respectivamente, o estado de calamidade pública e de emergência no Brasil.
É notória a crise financeira mundial decorrente da doença COVID-19, que impôs o isolamento social e, no Estado do Espírito Santo, resultou no fechamento do comércio desde 20-03-2020.
A jurisprudência do E. STJ há muito se consolidou no sentido de que o rol de hipóteses autorizativas do saque do FGTS previsto no supratranscrito art. 20 da Lei 8.036/1990 é exemplificativo, e não taxativo (ex: REsp 664.427/RN, Primeira Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 22.11.2004; REsp 659.434/RS, Primeira Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 24.4.2006; REsp 796.879/PR, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 30.8.2006; REsp 716.089/RS, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 23.5.2006). De igual maneira, também é considerado meramente exemplificativo o rol de desastres naturais listados no art. 2º do Decreto 5.113/2004, tanto que foi acrescido como tal o rompimento de barragens, após a tragédia de Mariana/MG em 2015.
Dessa forma, após a análise detida os autos, sob a ótica de uma cognição exauriente, com base no conjunto probatório produzido, RATIFICO a decisão anterior que, entendendo que a reclamante preencheu os requisitos necessários (probabilidade do direito alegado e perigo da demora - art. 300 e seguintes do CPC), deferiu, em parte, a tutela provisória postulada, e, nos termos do art. 20, XVI, da Lei 8.036/1990, determinou a liberação do(s) valor(es) existente(s) na(s) sua(s) conta(s) vinculada(s) do FGTS, até o limite de R$ 6.220,00, em obediência ao limite previsto no art. 4º do Decreto 5.113/2004, com multa diária por descumprimento fixada em R$ 500,00 reversível em favor do reclamante, limitada a R$ 8.000,00.
Por fim, entendo que o art. 29-B da Lei 8.036/90 não se enquadra no caso em tela e, portanto, não constitui óbice à concessão e à ratificação da tutela provisória sob exame. Primeiro porque não pode um dispositivo infraconstitucional impedir o acesso do trabalhador ao seu FGTS em momento de extrema necessidade, sob pena de violação, concomitante, dos princípios da vedação ao retrocesso social (art. 7º, caput e III, da CRFB) e da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CRFB). Segundo porque o citado dispositivo não pode ser analisado isoladamente, devendo ser interpretado conjuntamente com os arts. 29-A e 20, § 18 do referido diploma legal, que têm por objetivo garantir que o pagamento dos valores do FGTS seja feito pessoalmente ou em conta corrente do trabalhador, e não de terceiros, de modo a evitar fraudes, inclusive em procedimentos judiciais. Esse foi o posicionamento adotado pelo Ministro Luiz Fux por ocasião do julgamento da ADI 2479 / DF. Assim, como no caso dos autos os valores foram destinados a conta corrente de titularidade da obreira, e não do seu procurador ou de terceiros, revela-se alcançado o escopo da lei, e, por conseguinte, inaplicável discutido óbice legal.
Recorre a parte ré, reiterando os argumentos despendidos na contestação, sobretudo quanto à impossibilidade de equiparar a pandemia do Covid-19 às hipóteses previstas no art. 20 da Lei 8036/90.
Com razão.
O artigo 20, XVI, da Lei nº. 8.036/90 autoriza a movimentação da conta vinculada no FGTS na hipótese de necessidade pessoal, cuja urgência e gravidade decorra de desastre natural, o qual acarrete calamidade pública ou situação de emergência formalmente reconhecidas por decreto do respectivo ente federativo.
O Decreto nº. 5.113/04, que regulamenta este dispositivo, elenca as hipóteses consideradas como situações de desastre natural, todas as quais ligadas a eventos causados pela força da natureza (inundações, vendavais, alagamentos, etc.), autorizando que os titulares de contas vinculadas do FGTS residentes dentro das respectivas áreas atingidas possam movimentar a conta em vista da situação de extrema necessidade.
A leitura do arcabouço normativo que rege a movimentação dos depósitos do FGTS deixa clara a preocupação do legislador em estabelecer, de forma taxativa e restritiva, as situações autorizadoras do saque da conta vinculada. A atenção especial não poderia ser diferente, eis que os recursos incorporados ao FGTS possuem fundamental importância social, tendo em conta que, a teor do artigo 9º, §2º, da Lei nº. 8.036/90, são obrigatoriamente aplicados em programas de habitação, saneamento básico, infraestrutura urbana, operações de crédito destinadas às entidades hospitalares filantrópicas, dentre outras frentes que trazem grande impacto para a população mais necessitada.
Em vista da interpretação sistemática das normas que regem o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, e considerando que na aplicação da lei o Juiz não pode se divorciar dos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum (art. 5º, LINDB), a insurgência manifestada pela autora não merece prosperar.
Não se pode conferir interpretação ampliativa ao disposto no artigo 20, XVI, da Lei nº. 8.036/90, estendendo a aplicação da norma às pessoas afetadas pela pandemia do coronavírus (COVID-19), sob pena de se trazer danos irreparáveis ao tecido social, desestabilizando uma cadeia de programas financiados com os recursos do FGTS, cujo destinatário final são as camadas mais humildes da população, carentes de serviço de saneamento básico e desprovidas de habitação própria.
A autorização para a movimentação dos valores depositados nas contas vinculadas de trabalhadores, à luz da teoria do consequencialismo jurídico (art. 20, LINDB), pode acabar por desamparar uma parcela grande da população, que não será beneficiada pelos programas do Governo financiados com os recursos fundiários, ainda mais se considerar o potencial rombo no fundo caso todos os milhares de trabalhadores de alguma forma prejudicados pelo surto da COVID-19 no país decidam sacar os valores depositados em suas contas vinculadas.
É importante pontuar que a situação de extrema necessidade dos empregados e desempregados deste país já vem sendo atendida, na medida do possível, por programas do Governo de liberação gradativa de recursos, como o auxílio emergencial (Lei nº. 13.982/20) e o próprio saque do FGTS (MP 946/20), este limitado ao valor de R$1.045,00, observando-se, ainda, o cronograma de atendimento, critérios e forma estabelecidos pela Caixa Econômica Federal.
Diante da finitude dos recursos e do relevante objetivo social a que se destinam, a situação não pode ser analisada individualmente, mas deve ser tomada sob um aspecto mais amplo, voltado à manutenção das condições mínimas de operação do sistema. Assim, se os órgãos que administram os recursos estabelecem valores limites que podem ser liberados e prazos para a movimentação dos recursos que devem ser observados para não colapsar o sistema, não cabe ao Poder Judiciário se imiscuir na autonomia do gestor público e determinar a imediata e irrestrita liberação dos valores constantes na conta vinculada do trabalhador.
Assim, diante dos fundados elementos evidenciando o não enquadramento do caso dos autos a uma das hipóteses previstas no artigo 20 da Lei nº. 8.036/90, deve ser reformada a sentença que deferiu o pedido de expedição de alvará para saque do FGTS.
Portanto, dou provimento ao recurso.
Via reflexa, determino a cassação da tutela provisória deferida na origem." (fls. 160-164; grifos no original e ora apostos).
Pois bem.
A transcendência jurídica diz respeito à interpretação e aplicação de novas leis ou alterações de lei já existente, e, no entendimento consagrado por esta Turma, também à provável violação de direitos e garantias constitucionais de especial relevância, com a possibilidade de reconhecimento de afronta direta a dispositivo da Lei Maior. É o que se verifica na hipótese dos autos, mormente por se tratar de debate relativamente novo no âmbito desta Corte Superior.
Assim, reconheço a transcendência da causa e prossigo no exame do apelo.
EXPEDIÇÃO DE ALVARÁ PARA SAQUE DO FGTS. IMPOSSIBILIDADE. CALAMIDADE PÚBLICA RECONHECIDA POR DECRETO LEGISLATIVO. COVID-19. HIPÓTESE DE SAQUE NÃO PREVISTA NA LEI Nº 8.036/90
CONHECIMENTO
A recorrente sustenta, em suma, a possibilidade de equiparar a pandemia do Covid-19 às hipóteses do artigo 20 da Lei nº 8.036/90, pugnando pela expedição de alvará judicial autorizando-a a levantar valores de sua conta vinculada ao FGTS. Argumenta que, "quando o r. acórdão regional registra que "(...) não se pode conferir interpretação ampliativa ao disposto no artigo 20, XVI, da Lei n. 8.036/90, estendendo a aplicação da norma às pessoas afetadas pela pandemia do coronavírus (COVID-19)", acaba por violar a redação do indigitado dispositivo, eis que, conforme exaustivamente exposto, a pandemia da COVID-19 deve ser enquadrada como "desastre natural" (o Decreto nº 5.113/2004), o que autoriza a movimentação da conta vinculada." (fl. 178; destaques originários). Aponta violação do citado preceito de lei e dos artigos 7º, III, da CF e 2º e 4º do Decreto nº 5.113/2004. Transcreve arestos para confronto de teses.
Observados os requisitos do artigo 896, § 1º-A, I, II e III, da CLT. Desnecessário repetir a decisão recorrida, por economia processual.
Está demonstrado dissenso pretoriano válido e específico, mediante o aresto transcrito às fls. 178-179, oriundo do TRT da 1ª Região, por refletir tese nestes termos: "Considerando a decretação de calamidade pública em nível federal (Decreto Legislativo nº 6/20) e estadual (Lei Estadual 8.794/20) em decorrência da pandemia de coronavírus (Covid-19), assim como a autorização de movimentação da conta de FGTS na hipótese do art. 20, XVI, "a" da Lei nº 8.036/90, determina-se a liberação de tais depósitos, limitado o valor a R$6.220,00, importância fixada no Decreto nº 5.113/04".
Conheço do recurso, por divergência jurisprudencial.
MÉRITO
O cerne da controvérsia diz respeito à possibilidade de enquadramento da pandemia da covid-19 como desastre natural, à luz do disposto no do artigo 20, inciso XVI, da Lei nº 8.036/1990, visando a autorizar o saque integral dos depósitos do FGTS da conta vinculada da trabalhadora.
O Decreto nº 5.113/2004, regulamentador do referido dispositivo de lei, define o que se considera desastre natural, nos termos nele expressos. Não há referência, entretanto, à situação de pandemia. Por conseguinte, tendo em vista a análise sistemática dos aludidos dispositivos, depreende-se que a pandemia da covid-19 efetivamente não se enquadra na conceituação legal de desastre natural. De maneira que não se reconhece a possibilidade de expedição de alvará judicial, para fins de saque do FGTS.
Como bem ponderou o Tribunal Regional, a situação não deve ser analisada individualmente, mas, sim, sob um viés mais amplo, voltado à preservação das condições mínimas de operação do sistema. Efetivamente, a Medida Provisória nº 946, de 07/04/2020, impôs limites aos valores a serem levantados durante sua vigência (isto é, enquanto permanecer a pandemia da COVID-19), não se vislumbrando motivo para que tais balizas da lei não sejam observadas, "conforme cronograma de atendimento, critérios e forma estabelecidos pela Caixa Econômica Federal", tendo em vista o precípuo objetivo de se evitar um colapso no sistema bancário.
Releva, ainda, acrescentar que o STF, nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6371 e 6379, da relatoria do Ministro Gilmar Mendes (decisões publicadas no DJe de 3/6/2020) - nas quais se pretendia a liberação de saque das contas vinculadas dos trabalhadores no FGTS em decorrência da pandemia do novo coronavírus -, indeferiu pedido de medida liminar. Logo, considerando que, não obstante em sede liminar, a decisão da Corte Constitucional revela tendência a ser observada, bem como a legislação regulamentadora do saque do FGTS de forma específica à pandemia causada pelo COVID-19, não há como deferir a pretensão autoral.
Esta Corte Superior já teve oportunidade de se pronunciar sobre tal questão, nesse mesmo sentido. Eis alguns precedentes:
"RECURSO DE REVISTA. LEVANTAMENTO DO FGTS. CALAMIDADE PÚBLICA RECONHECIDA POR DECRETO LEGISLATIVO. COVID-19. HIPÓTESE DE SAQUE NÃO PREVISTA NA LEI Nº 8.036/90. IMPOSSIBILIDADE. Cinge-se a controvérsia à possibilidade de saque total do saldo de FGTS constante na conta vinculada da trabalhadora, em face do estado de calamidade pública causado pela COVID-19 e decretado pelo Governo Federal por meio do Decreto Legislativo n. 6/2020. O Tribunal Regional consignou que não há, no ordenamento jurídico, previsão de saque integral do FGTS, em decorrência dos efeitos da pandemia do COVID-19. Registrou que o artigo 20 da Lei 8.036/1990 autoriza o saque do FGTS, quando houver desastre natural decorrente de calamidade pública, havendo limitação quanto ao valor do saque, bem como condicionado à demonstração de necessidade do trabalhador. Consignou que, "Isso porque a regra de regência, em destaque o art. 20, inc. XVI, da Lei n° 8.036/90 (também regido no art. 2° do Decreto n° 5.113/2004), não contempla a pandemia - ou a condição sanitária em foco - como hipótese permitida para o saque pelo trabalhador dos importes depositados em sua conta vinculada. Ainda que interpretado como exemplificativo o aludido rol de hipóteses de desastre natural, não emerge dele ampliação indiscriminada com alcance bastante para contemplar a pandemia alegada pela autora. Isso porque a regra em voga veio à tona com o propósito de reconhecer os efeitos nocivos causados por fenômenos da natureza dissociados de origem ou de alguma ordem sanitária em geral ou abstratamente considerada. Tanto isso ficou revelado pela mens legis, que foram previstos eventos, de caráter sanitário, vinculados a repercussões nocivas experimentadas, de forma específica, pelo trabalhador titular da conta de FGTS ou pelos seus dependentes, nas ocorrências de neoplasia maligna (inc. XI), de portadores de HIV (inc, XIII) e de estágio terminal em razão de doença grave (inc. XIV).". Evidenciou que "Com isso, inviável extrair exegese de que teria sido atribuído pelo legislador, à pandemia ou a outros eventos sanitários genericamente configurados como as endemias ou epidemias, as características próprias dos fenômenos naturais enquadráveis na hipótese específica de desastre natural.". Concluiu, assim, que a hipótese em apreço não se enquadra nas permissões para levantamento do FGTS previstas no artigo 20 da Lei 8.036/1990. É certo que a caduca Medida Provisória Nº 946, de 7 de abril de 2020, concedeu autorização temporária de saque do FGTS. Conforme se extrai do art. 6º da MP 946/2020 a autorização excepcional de saque em razão do estado de emergência causado pela COVID-19 limitava-se ao montante de R$ 1.045,00. No entanto, no caso dos autos, a reclamante postula o saque integral de sua conta vinculada, cujo montante está na ordem de R$ 8.011,39, conforme noticiado na petição inicial. A Lei nº 8.036/90 é taxativa quanto as hipóteses de saque do FGTS, conforme hipóteses previstas no art. 20 da referida lei. Não obstante os nefastos danos causados pela pandemia, inclusive o aumento do desemprego e miserabilidade, o estado de calamidade pública causado pela COVID-19 não consta no rol previsto na Lei nº 8.036/90 como hipótese de saque total do FGTS, tendo sido regulado por medida provisória apenas o saque temporário e limitado. A referida Medida Provisória poderia ter expressamente incluído a pandemia da COVID-19 como hipótese de saque total do FGTS, mas não o fez, não tendo sido essa a intenção do legislador. Além disso, a hipótese de saque pleiteada pela autora tampouco pode ser equiparada a desastre natural, nos termos do inciso XVI, quer porque não decorre de evento da natureza que atinja somente uma localidade, quer porque tal hipótese também não autoriza o saque integral, mas limitado ao valor fixado no regulamento. Logo, por qualquer ângulo que se examine, o pedido formulado pela reclamante não encontra amparo legal, tendo sido o legislador taxativo nas hipóteses de saque do FGTS. Desse modo, constata-se que o Tribunal Regional, ao registrar que o caso dos autos não se enquadra nas hipóteses previstas no artigo 20 da Lei 8.036/90, deu a correta interpretação aos requisitos previstos na lei e na Medida Provisória nº 946/2020. Recurso de revista não conhecido." (RR-566-33.2020.5.12.0019, 3ª Turma, Relator Ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 10/12/2021);
"AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. ACÓRDÃO PUBLICADO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.467/2017. CALAMIDADE PÚBLICA. PANDEMIA DE COVID-19. SAQUE DOS DEPÓSITOS DE FGTS. CONDIÇÕES ESTABELECIDAS NA MP Nº 946/2020. VINCULAÇÃO. TRANSCENDÊNCIA JURÍDICA. A questão relativa à aplicação das restrições contidas na MP nº 946/2020 à pretensão obreira de saque dos depósitos de FGTS da conta vinculada é nova no âmbito desta Corte Superior, razão pela qual a matéria possui transcendência jurídica. No tema de fundo, contudo, a decisão do Regional, naquilo em que limitou o direito ao saque dos depósitos de FGTS ao valor de R$ 1.045,00 (hum mil e quarenta e cinco reais), nos termos do art. 6º da citada MP nº 946/2020, está em consonância com o posicionamento externado pelo Supremo Tribunal Federal na decisão monocrática proferida pelo relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.379, na qual o pedido liminar, no sentido de cassar o limite de saque e o cronograma elaborado pela medida provisória, foi rejeitado. Nos termos da fundamentação do Ministro Gilmar Mendes, "não me parece que a mera declaração de estado de calamidade pública permita o levantamento do FGTS, independentemente de expedição de outro regulamento específico e autorizativo do saque. Em razão disso, justamente, foi editada a Medida Provisória 946/2020, que disciplinou o assunto e permitiu o saque do fundo, no valor de até R$ 1045 por trabalhador, segundo cronograma." Sua Excelência, observou, ainda, que "Não vejo, ao menos nesse juízo liminar, como a concessão do saque do FGTS prevista para o dia 15 de junho de 2020 e em valor fixado em até R$ 1045,00 pode violar os princípios questionados nestas ações diretas de inconstitucionalidade." Concluiu, ao final, pela ausência do periculum in mora, que para ele seria exatamente o inverso, uma vez que "o deferimento da liminar postulada poderia, em última análise, prejudicar a capacidade de pagamento do FGTS neste instante, conforme as já citadas informações do Secretário de Política Econômica." Em que pese ainda não haja solução final para esta ação direta de inconstitucionalidade (ou mesmo para a outra ADI que tramita conjuntamente no STF - ADI nº 3.671), parece razoável, diante do cenário jurídico instalado com a MP nº 946/2020, concluir que, de fato, o enquadramento da hipótese específica da pandemia de COVID-19 na seara genérica do art. 20, XVI, da Lei nº 8.036/1990 e do Decreto nº 5.113/2014, liberando saques da conta vinculada, sem respeitar os limites e cronogramas estabelecidos pelas normas regulamentares expedidas pelo Governo Federal, seria invadir um campo de atuação política ligado exclusivamente às atividades típicas dos Poderes Executivo (que gere o fundo) e Legislativo (a quem cabe a apreciação da referida Medida Provisória, assim como a edição normas gerais sobre esse tema). Diante desse contexto, a decisão do Regional merece ser mantida, na medida em que não há, na norma específica editada após a calamidade pública decretada com o surgimento da pandemia de COVID-19 (MP nº 946/2020), previsão capaz de viabilizar o pleito autoral de saque integral dos valores depositados na conta vinculada do FGTS, ou, subsidiariamente, o saque de R$ 6.220,00 (seis mil, duzentos e vinte reais), nos termos do art. 4º do Decreto nº 5.113/2004, o qual é inaplicável à espécie. A interpretação sugerida pela reclamante, no sentido de que o pleito de saque do FGTS por necessidade pessoal ocasionada pela calamidade decorrente da COVID-19 não se confunde com a liberação de saque do FGTS regulamentada pela MP nº 946/2020, pois não teria como pressuposto essa condição de "necessidade pessoal", é um contrassenso, se foi exatamente a dimensão e amplitude econômica da crise causada pela pandemia do novo Corona Vírus (SARS-COV-19) que motivou a edição da referida medida provisória, tendo em vista não apenas a situação de decréscimo de renda e de postos de trabalho para a população, mas, igualmente, a necessidade de manter o fundo hígido. Ou seja, não fosse a calamidade pública decorrente da deflagração dos efeitos econômicos deletérios da COVID-19 uma causa associada exatamente ao art. 20, XVI, da Lei nº 8.036/1990, e com características próprias que impuseram ao Poder Executivo uma regulamentação emergencial mais restritiva, dada a sua amplitude, não haveria necessidade de edição da medida provisória, já que a situação já estaria abraçada pelo Decreto nº 5.113/2004. O intuito do Governo Federal com essa medida foi organizar a liberação de saques sem promover a ruína do fundo, que possui um relevante papel social que transcende às causas transitórias da atual conjuntura econômica, e deve permanecer fiel à sua missão constitucional de fomentar o desenvolvimento econômico do país e a estabilidade financeira dos trabalhadores em momentos de crise ou necessidade emergencial, mas tudo isso dentro das balizas econômicas traçadas pelos gestores do fundo, sob pena de rompimento brusco de sua liquidez, com consequente vulneração de seus princípios instituidores. A limitação dos saques, ao que tudo indica, foi uma medida de natureza protetiva do fundo, com o intuito de fomentar a liberação limitada de suas reservas, sem descurar do delicado momento econômico dos seus legítimos legatários, já que outras políticas públicas de amparo e assistência social foram implementadas em conjunto com essa medida, a exemplo daquelas tratadas pelas Medidas Provisórias nºs 927/2020 e 937/2020. Qualquer invasão discricionária do Poder Judiciário nesse campo atuarial de gestão equilibrada das reservas do FGTS, ou mesmo das medidas de enfrentamento econômico da crise legada pela pandemia de COVID-19, seria uma atuação fora dos limites da jurisdição, porquanto dissociada de critérios econômico-financeiros apreciáveis e vinculantes da aplicação política adequada de tais recursos. Não há, portanto, um direito da reclamante a obter um saque ilimitado dos valores vinculados à sua conta do FGTS, tampouco um direito ao saque pretendido nos termos do art. 4º do Decreto nº 5.113/2004 (no valor de R$ 6.220,00), já que os saques motivados pelo contexto de calamidade pública decorrente da deflagração da pandemia de COVID-19 estão limitados pelo art. 6º da citada MP nº 946/2020. Ante o exposto, em que pese a transcendência jurídica reconhecida, não comporta provimento o agravo de instrumento da reclamante. Agravo de instrumento não provido." (AIRR-578-19.2020.5.06.0341, 5ª Turma, Relator Ministro: Breno Medeiros, DEJT 12/11/2021);
"RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.015/2014 E REGIDO PELA INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 39/2016. LEVANTAMENTO DO SALDO DO FGTS DA CONTA VINCULADA DO TRABALHADOR. PANDEMIA DA COVID-19. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. LEI Nº 036/1990 E DECRETO Nº 5.113/2004. A discussão dos autos diz respeito à possibilidade de enquadramento da pandemia da covid-19 como desastre natural, nos termos do artigo 20, inciso XVI, da Lei nº 8.036/1990, a fim de autorizar o saque integral dos depósitos do FGTS da conta vinculada da trabalhadora. O Decreto nº 5.113/2004, que regulamenta o referido artigo, define o que se considera desastre natural pela lei. Contudo, não há referência à situação de pandemia. Assim, diante da análise conjunta dos dispositivos transcritos, verifica-se que a pandemia da covid-19 não se enquadra na definição de desastre natural, segundo a legislação em vigor. Recurso de revista não conhecido." (RR-2563-72.2020.5.12.0012, 2ª Turma, Relator Ministro: José Roberto Freire Pimenta, DEJT 15/10/2021);
"AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI N.º13.467/2017. FGTS. LEVANTAMENTO INTEGRAL EM DECORRÊNCIA DOS EFEITOS DA COVID-19. art. 20 da Lei 8.036/1990 regulamentado pelo Decreto 5.113/2004. REQUISITOS NÃO COMPROVADOS. O Tribunal de origem concluiu pela ausência de norma legal a fundamentar a pretensão de saque integral do FGTS da reclamante em decorrência da situação de pandemia de COVID-19. Assentou o TRT que "há de ser considerado o contexto generalizado da utilização dos recursos de FGTS pelo Estado, pois se sabe que eles são aplicados em diversos projetos de desenvolvimento econômico e social, de modo que é mister garantir o seu equilíbrio econômico-financeiro". Asseverou que "de acordo com o § 2º do artigo 9º da Lei 8.036/1990, os recursos do FGTS deverão ser aplicados em habitação, em saneamento básico, em infraestrutura urbana e em operações de crédito destinadas às entidades hospitalares filantrópicas, bem como a instituições que atuam no campo para pessoas com deficiência, e sem fins lucrativos que participem de forma complementar do SUS, desde que as disponibilidades financeiras sejam mantidas em volume que satisfaça as condições de liquidez e de remuneração mínima necessária à preservação do poder aquisitivo da moeda". Evidencia-se que a Corte de origem deu a exata subsunção dos fatos aos pressupostos constantes na Medida Provisória nº 946/2020, registrando que o caso dos autos não se enquadra nas permissões de movimentação da conta de FGTS previstas no art. 20 da Lei 8.036/1990, regulamentado pelo Decreto 5.113/2004. Agravo de instrumento não provido." (AIRR-10341-27.2020.5.15.0104, 2ª Turma, Relatora Ministra: Maria Helena Mallmann, DEJT 06/08/2021);
"AGRAVO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO DA RECLAMANTE - INTRANSCENDENTE - DESPROVIMENTO - APLICAÇÃO DE MULTA. 1. No despacho agravado, considerou-se carente de transcendência o apelo obreiro, quer pela matéria em debate (direito ao saque do FGTS), que não é nova (CLT, art. 896-A, § 1º, inciso IV) nem a decisão regional atentou contra direito social constitucionalmente assegurado (inciso III) ou jurisprudência sumulada do TST ou STF (inciso II), quer pelo valor da causa (R$ 1.000,00), que não pode ser considerado elevado de modo a justificar, por si só, nova revisão do feito (inciso I). 2. Nesses termos, não tendo a Agravante conseguido demonstrar a transcendência do feito e a viabilidade do recurso de revista quanto ao tema do direito ao saque do FGTS, refutando devidamente os fundamentos do despacho agravado, este deve ser mantido. Agravo desprovido, com aplicação de multa." (Ag-AIRR-478-42.2020.5.06.0122, 4ª Turma, Relator Ministro Ives Gandra Martins Filho, DEJT 30/07/2021).
Tem-se, claro, sensibilidade com a situação individual do trabalhador, considerando que os valores depositados em seu nome no fundo de garantia certamente seriam de grande valia para enfrentar as dificuldades impostas na pandemia. Mas, por outro lado, não se pode deixar de considerar que o montante do fundo tem destinações específicas, de especial caráter social, voltada toda à sociedade.
Necessário, nesse contexto, observar as restrições legais impostas ao levantamento.
Com esses fundamentos, nego provimento ao recurso de revista.
ISTO POSTO
ACORDAM os Ministros da Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade, reconhecer a transcendência da causa e conhecer do recurso de revista quanto ao tema "EXPEDIÇÃO DE ALVARÁ PARA SAQUE DO FGTS. IMPOSSIBILIDADE. CALAMIDADE PÚBLICA RECONHECIDA POR DECRETO LEGISLATIVO. COVID-19. HIPÓTESE DE SAQUE NÃO PREVISTA NA LEI Nº 8.036/90", por divergência jurisprudencial. No mérito, também por unanimidade, negar-lhe provimento.
Brasília, 11 de maio de 2022.
Firmado por assinatura digital (MP 2.200-2/2001)
CLÁUDIO BRANDÃO
Ministro Relator
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